“Homens completamente diferentes pela sua inteligência têm instintos, paixões e sentimentos por vezes idênticos. Mesmo os homens mais eminentes raramente ultrapassam o nível dos indivíduos vulgares em tudo o que seja matéria de sentimento: religião, política, moral, afeições, antipatias, etc. Entre um matemático célebre e o seu sapateiro poderá existir um abismo do ponto de vista intelectual, mas quanto ao carácter e às crenças de cada um a diferença é muitas vezes nula ou muito pequena.”
Gustave le Bon
Numa época de vazio ideológico, ou pelo menos de declínio político das ideologias, a chamada «personalização da política» tende a tornar-se norma nas sociedades contemporâneas. As preferências dos eleitores e o sentido partidário dos seus votos decidem-se mais por uma impressão subjectiva das propriedades pessoais dos políticos do que pelas ideologias e pelos programas com que estes se apresentam aos eleitores. Tais propriedades – honestidade, competência, confiabilidade, seriedade, exemplaridade, integridade – sobrepõem-se hoje às motivações ou às razões ideológicas e também nunca como hoje estas propriedades foram tão inspeccionadas, escrutinadas e vigiadas.
Com efeito, os comportamentos – tanto públicos como privados – dos agentes políticos estão submetidos a um regime de observação intensiva e permanente. Também as querelas estritamente partidárias ou corporativas suscitam cada vez menos respeito e são mesmo ignoradas e desprezadas por uma larga maioria de eleitores. Claro que continua a ser importante fazer parte de uma tribo, de um clã, de uma parentela ou de uma determinada família política, mas isso, por si mesmo, não assegura nada.
Numa palavra, os eleitores de hoje preocupam-se mais com as propriedades dos representantes do que com os princípios dos representados. O eleitor julga comportamentos. Julga o modo como os políticos se conduzem. Por aqui se explica também que ele atribua mais importância ao procedimento do que ao conteúdo, propriamente dito, da política apresentada. É mais o modo como se fazem as coisas do que o que das coisas que preocupa e mobiliza o eleitorado. O importante é o «como». O resultado. E como vivemos em sociedades secularizadas, a ética já não pode ser reivindicada como um substituto da política. A ética, por si mesma, não garante a boa política ou a política que mais interessa ou convém. Também por aqui se explica a tolerância e a abertura com que o eleitorado português acolhe a mentira política, que por se ter tornado normal deixou de poder servir de critério de medida ou distinção.
O eleitorado contemporâneo não gosta de meros simulacros de mudança. De falsos movimentos. Por isso, pode muito bem conceber-se que ele possa desejar castigar mais uma oposição extrema do que uma oposição débil. Aliás, os agentes políticos perceberam já que as pessoas não dão muito crédito a uma oposição excessiva, não justificada, podendo mesmo castigá-la com severidade. Eles dão-se conta de que o eleitor percepciona a excessiva oposição como algo que não é bom em si mesmo, a não ser que esteja claramente fundamentada e bem justificada.
Não há hoje «revoluções». A não ser sob a pragmática modalidade de «reformas». Há, claro, aceitação de um perfil político diferente. A oposição política, aliás, é mesmo exigida, mas, a partir do momento em que o eleitorado percebe que a diferença é apenas um instrumento para ganhar as eleições, esse acto também pode ser penalizado eleitoralmente. Em qualquer caso, exige-se que a oposição tenha clareza na formulação da sua diferença e que saiba justificá-la ao eleitorado. Não apenas no valor orçamental abstracto das suas propostas, mas na justificação política, concebivelmente prática, dessa diferença. A diferença tem sempre que ser uma diferença de perspectiva, com o que esta implica de visão do futuro, ainda que imediato. Caso contrário, não é uma diferença efectiva.
Por isso, uma visão com perspectiva ou uma visão prudencial da competição eleitoral não pode excluir a priori a possibilidade ou a necessidade de pactuar acordos com visões e perspectivas distintas. Isto significa que as propostas dos partidos políticos junto do eleitorado não podem jogar-se apenas na cegueira do curto-prazo. E porque qualquer possível resolução efectiva de um problema comum aos diferentes partidos excede o curto-prazo, as diferentes perspectivas devem estar acreditadas como algo comum a negociar entre as partes. Por este motivo, a agitação sobre temas pequenos ou falsos problemas que duram pouco tempo impede acordos duráveis e incrementa a crescente desafeição do eleitor português pelo seu representante.
Uma vez estes princípios gerais enunciados, como vai votar o eleitorado português no próximo domingo?
Arrisco uma hipótese. O eleitorado português é eminentemente conservador. Perante um cenário de incerteza e de dúvida como o actual o conservadorismo do eleitor português não se apresenta nem como um dogma, nem como uma doutrina; é antes o que se poderia chamar uma disposição psíquica sob a forma prática de um expediente.
Mas como definir o «conservadorismo», em geral, e o «conservadorismo» português, em particular? Socorro-me de uma definição de Michael Oakeshott em On Being Conservative: «Ser conservador consiste em preferir o familiar ao desconhecido, o que já foi tentado ao que ainda o não foi, os factos ao mistério, o actual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à bem-aventurança utópica. Uma propensão para usar e usufruir o que está disponível, o que se tem, em vez de desejar ou procurar outra coisa; deleitar-se com o que se apresenta, mais do que com o que já foi ou com o que pode ser. As relações e as lealdades familiares serão preferidas ao fascínio de vínculos mais proveitosos. O adquirir e o aumentar serão menos importantes do que o guardar, o cultivar e o usufruir. O pesar provocado pela perda será mais agudo do que a excitação da novidade ou da promessa. Trata-se de estar à altura da nossa própria fortuna, de viver de acordo com o nível dos nossos próprios meios, de ficar contente com a exigência de uma maior perfeição que seja conforme a nós e às nossas circunstâncias».
Quem não reconhece nesta definição de «conservadorismo» uma maioria conservadora no eleitorado português?
Por natureza, o eleitor de temperamento conservador é apreensivo face ao futuro e prefere a segurança ao perigo. É um inovador relutante e, quando aceita a mudança, não é porque goste dela, mas apenas porque a sente como inevitável e inescapável. Este comportamento previsivelmente conservador do eleitor português funda-se no facto de ele estar persuadido de que nem toda a inovação ou mudança é, de facto, uma melhoria. Ele sabe que uma melhoria absoluta é coisa que não existe. E uma melhoria relativa deixa-o inseguro. E se sente medo da mudança é porque com muita probabilidade esta se lhe apresenta como uma potencial perda.
Mas, o que nos diz a este respeito aquilo a que se poderia talvez chamar a «psicologia política» do eleitor português?
Em primeiro lugar, que ele não deve renunciar de ânimo leve a um bem conhecido ou a um mal menor por um bem melhor, mas desconhecido.
Em segundo lugar, o eleitor português – fiel nisto ao modo como o Dr. Oliveira Salazar o concebeu e se lhe dirigiu – não se apaixona facilmente pelo que é perigoso ou difícil; não é aventureiro; de maneira assaz pouco camoniana, não se sente levado a navegar por mares desconhecidos; velho e calejado como é, para ele não há nada de excitante e de prometedor em se achar perdido, desorientado ou naufragado. Por isso, o que os outros plausivelmente identificam como timidez, e até como masoquismo, ele reconhece-o como mero bom senso ou simples prudência racional; e o que os outros interpretam como inactividade, passividade e cobardia, reconhece-o ele como uma disposição para usufruir do que vai havendo, mais do que para explorar o que ainda não existe ou possa vir a existir.
Em terceiro lugar, o eleitor português é cauteloso e está disposto a indicar o seu acordo ou desacordo apenas em termos graduais e equilibrados, e nunca de maneira absoluta ou “radical”. Neste momento particular da sua história politica, ele olha com receio e temor para tudo o que possa romper a sua familiaridade com o que está imediatamente disponível.
Cabe agora perguntar. Mas, não era já este, afinal, o perfil psicológico do não-eleitor português no tempo do Dr. Oliveira Salazar? O que significam estes três enunciados do professor de finanças de Coimbra: 1) «quero levar os portugueses a viver habitualmente. Creio no hábito. Viver perigosamente, como queria Nietzsche, isso não! Viver habitualmente»»; 2) «somos um país pobre, doente, que não suporta facilmente grandes injecções de sangue novo… vamos devagarinho, passo a passo»; 3) «o português gosta de ser conduzido sem dar por isso; e quando enquadrado e convenientemente dirigido, o português dá tudo quanto se quer»?
O leitor que faça livremente o seu juízo e que retire as suas conclusões.
Professor de Ciência Política na Universidade da Beira Interior