Existem diversos comportamentos que podem ser classificados em diferentes tipologias de maus tratos a crianças e adolescentes. A definição das várias formas de maus tratos é influenciada por variáveis históricas, culturais e profissionais, o que equivale a dizer que em diferentes momentos históricos, em culturas específicas e por parte de técnicos de áreas profissionais distintas (sejam da saúde, educação, psicologia, direito, serviço social, etc.), os maus tratos têm sido, e ainda são, definidos de uma forma diferente consoante os contextos.

Apesar de já anteriormente ter sido aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a Declaração Universal dos Direitos da Criança, foi apenas em 1961 que o pediatra Henry Kempe e colaboradores apresentaram o chamado “síndrome da criança batida”,sensibilizando a comunidade, médica e não só, para a problemática dos maus tratos físicos em crianças e adolescentes. Até então, comportamentos que configuram mau trato físico, com dano físico real ou potencial, não era percepcionados enquanto tal, mas muitas vezes legitimados enquanto forma de educação. Em muitas culturas (incluindo a nossa), predominam ainda crenças que legitimam o uso da punição física como uma forma aceitável e até desejável de educação. Estas são crenças que aumentam, naturalmente, a probabilidade de recorrer a práticas parentais mais punitivas.

O abuso sexual tem também vindo a ser reconhecido de uma forma progressiva. Se, numa fase inicial, eram apenas valorizados comportamentos mais intrusivos, que envolviam contacto físico e penetração (oral, vaginal ou anal), temos hoje um olhar diferente sobre esta forma de mau trato. Este olhar permite reconhecer como sexualmente abusivos todo um conjunto de comportamentos, com ou sem contacto físico, que estão também devidamente enquadrados do ponto de vista legal.

Neste contexto, constatamos que a maior parte da literatura, nacional e internacional, tem vindo a debruçar-se sobre o estudo dos maus tratos físicos e do abuso sexual. No entanto, estas não são as formas de mau trato mais prevalentes. A forma de mau trato mais prevalente e com maior incidência é a negligência.

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Enquanto os maus tratos se caracterizam por comportamentos de acção, a negligência envolve omissão. Uma classificação relativamente consensual na literatura e que adoptamos é a negligência por falta de provisão (quando as necessidades mais básicas da criança não são satisfeitas, seja a nível de higiene, saúde, vestuário, alimentação, sono, entre outras) e negligência por falta de supervisão (quando a criança não é supervisionada de forma adequada, atendendo à sua idade, nível de desenvolvimento e contexto). A investigação sobre esta forma de mau trato é ainda escassa, especialmente quando comparada com aquela que incide sobre os maus tratos físicos e o abuso sexual. Sabemos ainda pouco sobre os processos internos dos cuidadores negligentes, de que forma podem ser avaliados e compreendidos, por forma a desenhar programas de prevenção primária e de intervenção mais eficazes.

Do mesmo modo, sabemos ainda muito pouco sobre os maus tratos emocionais (também chamados de maus tratos psicológicos). A investigação sobre esta forma de mau trato é difícil, na medida em que, segundo diversos autores, será uma tipologia de mau trato co-presente em todas as outras. O que equivale a dizer que qualquer forma de mau trato envolve sempre maus tratos emocionais.

Os maus tratos emocionais envolvem comportamentos de mais difícil identificação, pois não deixam marcas físicas nem lesões visíveis aos olhos. Deixam outro tipo de sequelas. Falamos de comportamentos reiterados que envolvem humilhar, ignorar, aterrorizar, ameaçar, minimizar ou desvalorizar. Falamos também de crianças expostas à violência e conflitos entre terceiros, nomeadamente, entre os pais. Seja violência física ou verbal.
«Nunca devias ter nascido», «Não vales nada», «Qualquer dia abandono-te». «És sempre uma tristeza». «Envergonhas-me». «A tua mãe não gosta de ti». «És burra e nunca serás ninguém na vida». «O teu pai queria que eu tivesse feito um aborto e matar-te». Etc., etc. Frases ditas uma vez e outra vez, levando as crianças a sentir-se inferiores. Menos importantes e piores do que as outras. Não desejadas e não amadas. E haverá pior coisa do que sentirmos que não gostam de nós e não somos desejados?

Tantas vezes estas crianças dizem, «preferia que me tivesse batido, do que tivesse dito aquilo».
Sim, os maus tratos emocionais continuam ainda a ser desvalorizados e o seu impacto negativo minimizado. Na ausência de lesões observáveis, considera-se que o impacto emocional não é muito significativo. Mas é. A investigação tem demonstrado que os efeitos negativos desta forma de mau trato são semelhantes aos identificados em crianças que são vitimas directas de maus tratos físicos.

Neste contexto, importa sensibilizar toda a comunidade para que se altere a forma de olhar para os maus tratos emocionais. Sensibilizar também os diversos profissionais, que persistem em considerar esta forma de mau trato como menos grave sem, por isso, assegurar formas de proteger a criança e responsabilizar quem maltrata. É necessário intervir para que os maus tratos emocionais deixem de ser o “parente pobre”dos maus tratos. Para que deixemos de ouvir dizer que «a criança apenas assistiu aos conflitos, ninguém lhe bateu» ou, ainda, que «foram apenas maus tratos emocionais’.