Para as pessoas da minha geração, Gabriel Alves era uma presença constante aos domingos à noite quando apresentava o – preparem-se para o escândalo – único programa de futebol da semana que – o escândalo não acaba – era efetivamente sobre futebol, embora com algumas referências a outros desportos. O que Gabriel Alves tinha de notável e raro era o facto de se assumir como um jornalista que comentava aquilo que lhe aparecia à frente e, talvez por isso, começava muitas frases com “se por um lado…” e dava sempre a outra perspetiva com “…por outro lado…”.
A polémica em torno do Prof. Catedrático Convidado Pedro Passos Coelho, que não é uma polémica sobre o Prof. Catedrático Convidado, mas sim porque é Pedro Passos Coelho, funcionou, na minha pouco humilde opinião, para puxar todo o tipo de disparate. E isto foi extraordinariamente positivo. Uns pró, outros contra, mas muito pouco na perspetiva Gabriel Alves de que, se por um lado há razões, por outro também as há. E a minha perceção do chorrilho de disparates é que houve muito pouco entendimento das razões contrárias e que no fim levará a conclusão mais óbvia de tudo isto: “porque não?”.
Por um lado, Pedro Passos Coelho (PPC) foi primeiro-ministro da República Portuguesa naquele que foi um dos períodos mais desafiantes de toda história do Estado, tentando gerir a coisa pública, com um Estado inteiro hostil ao programa de recuperação que toda a gente assinou, mas que ninguém quis cumprir. A começar no Presidente da República Cavaco Silva e a acabar na senhora da repartição de finanças de Vila Real de S. António. Programa de recuperação esse sem o qual nenhum dos personagens acima indicados receberia hoje qualquer tostão no fim do mês, mas que todos contribuíram para que não fosse cumprido nos seus pontos essenciais e que tinha implicações óbvias na sua remuneração mensal. Face a isto, não há em todo o país ninguém, sublinho, ninguém que possa ensinar “Ciência Política”, seja lá o que isso for, melhor que PPC porque ninguém, mais uma vez, pode apresentar num currículo “ah, já agora, salvei um Estado que não merecia ser salvo”. O grosso da ironia está no facto de boa parte dos opositores à contratação de PPC para o ISCSP lhe deverem hoje o seu salário, porque não ouvi nenhuma crítica à contratação de quem não fosse pago pelos meus impostos. O reverso já não é verdade, ouvi de muito professor do Estado elogios a esta contratação.
Ainda olhando deste lado, uma das críticas que se ouvia era a falta de graus académicos que justificassem a sua contratação como professor. Esta era claramente a mais estúpida de todas as razões, porque se estamos a falar de política e de economia pública, diria que ser primeiro-ministro de um estado falido a viver da caridade alheia supera bem a elaboração de teses e papers. Aqui, o mundo académico, particularmente o mais ligado às “humanidades”, cobriu-se do mais intenso ridículo, mesmo aquele habituado a dizer que a Autoeuropa não tem valor porque monta tudo. O que, diga-se, foi uma obra em si mesmo! E mesmo isto, devemos ver numa perspetiva Gabriel Alves: se por um lado cobre o país de vergonha; por outro afasta os nossos filhos dessas escolas e isso, no fim do dia, já é muito positivo. Aqui, mais uma vez, também houve academia ligada às “humanidades” que não se portou de forma ridícula e temos que reconhecer isso.
Por outro lado, ser professor implica ensinar aquilo com que se concorda e aquilo com que não se concorda. Se fosse Física não nos passava pela cabeça que a pessoa que tinha desenhado um reator de fusão nuclear fria (coisa complicada…) não soubesse de mecânica newtoniana (coisa antiga…). Mas isto é outra coisa, não tem essa carga científica, apesar do nome. O curso não é para ensinar a ser PPC. Esse já existiu e existe. O curso serve para educar pessoas no que às ações de PPC diz respeito, mas também no que diz respeito às ações de outras pessoas que se opunham. E se podemos admitir que PPC é uma pessoa particularmente bem posicionada para o ensinar, também é verdade que lhe falta – ainda, diria eu – a estaleca de ensinar aquilo com que não concorda. A sua entrada como Professor Catedrático Convidado traz, naturalmente, um considerável desrespeito pelos fundamentos teóricos daquilo que vai ensinar porque se está a determinar que entra pelo topo da carreira, isto é, há muito pouco que PPC possa aprender para que seja competente para ensinar aos outros. E isto não é objetivamente verdade.
Ainda olhando deste lado, as críticas que se ouvia aos académicos que se opunham era que viviam fechados na academia, sem qualquer experiência do mundo exterior e ainda tinham a “lata” de criticar a contratação. E esta pareceu-me a mais estúpida das razões do lado dos defensores. Um académico deve ser excelente naquilo que é a teoria daquilo que ensina. Claro que ter experiência parece-me uma mais-valia, como parecerá a qualquer pessoa. Mas está longe de ser fundamental. Aliás, se estamos a falar de política, isso implicaria que os professores de política fossem todos políticos. E nós, na nossa história, tivemos tanto sucesso com professores universitários como chefes de governo, que a simples sugestão de que é bom ter um professor universitário como primeiro-ministro devia dar logo direito a dez reguadas e orelhas de burro.
Aqui até posso dar a minha visão pessoal: tenho 25 anos de experiência profissional, licenciatura, mestrado, doutoramento e só se alguém fosse maluco faria de mim professor catedrático porque não tenho qualquer treino a ensinar coisas com que não concordo. Tenho ainda muito que aprender para o poder fazer. Por isso, as críticas à contratação, pelo menos as decentes, fazem algum sentido.
Agora temos as condicionantes e a envolvente externa. Por um lado, podia PPC ser contratado como professor com um ordenado digno de um ex-primeiro ministro se não fosse Professor Catedrático? Pois, se calhar não. Por outro lado, porque carga de água um ex-primeiro ministro tem direito a um “ordenado digno” e os outros “ex-qualquer coisa” não têm? E se pagassem menos, poderia ir dar aulas para outro sítio e a escola tomou uma boa decisão de gestão? Outro fator apontado pelos defensores era a quantidade já existente de ex-governantes na mesma situação “académica”. Que, se por um lado podemos ver como positiva a absorção de experiências; por outro lado também pode sugerir que a academia se tornou um “dumping site” de políticos afastados.
A perspetiva Gabriel Alves tem, assim, grandes vantagens. A primeira é que, pesando as coisas de um lado e de outro, valorizamos mais corretamente os ativos em jogo. Quer o conhecimento acumulado de PPC, que é valiosíssimo, quer a importância de uma academia rigorosa. E isto implica o reconhecimento de que as coisas com que concordamos têm que ser apresentadas como aquelas com que não concordamos a quem ainda não começou o seu caminho.
A segunda é que tiramos valor aos passivos em jogo. A maior parte do diálogo gerado publicamente com tudo isto revelou que a academia tem peças que não deveriam lá estar – pelo menos naquilo que o contribuinte paga – e que tem peças muito importantes para a sua valorização.
Finalmente, traz-nos aquilo que é a conclusão óbvia. O homem não vai passar receitas, nem assinar projetos de pontes. Porque não?
(As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente o seu autor)
PhD em Física, Co-Fundador da Closer, Vice-Presidente da Data Science Portuguese Association