As recentes greves, frequentemente justificadas por motivos legítimos, começam a suscitar reações adversas por parte da população. Ao contrário de outras que, mesmo antes do 25 de Abril, foram compreendidas e apoiadas pela maioria dos cidadãos. Um exemplo marcante foi a Greve da Carris, realizada sob feroz repressão ditatorial em julho de 1968 e que ficou conhecida como “greve da mala”:

  • clandestina, por estar proibida pela Constituição de 1933, por oposição às greves no pós 25 de Abril, expressamente autorizadas pela Constituição de 1976;
  • organizada de forma espontânea pela clandestina Pró-Comissão de Luta, ao passo que as atuais greves são promovidas com facilidade, liberdade e segurança pelos sindicatos;
  • sofrendo violenta repressão da PSP, polícia de choque e PIDE, ao contrário das atuais que devem apenas obedecer à Lei da Greve e não causar violência ou destruição de propriedade;
  • suspendendo a cobrança de bilhetes, com o serviço público de transporte praticamente inalterado, ao contrário das atuais greves que suspendem os serviços, só os mantendo parcialmente se forem decretados pelo Tribunal;
  • realizada contra um operador privado, ao contrário das greves atuais, que, na maior parte dos casos, se verificam em entidades estatais, paraestatais e empresas públicas nacionais ou municipais;

  • provocando inevitáveis prejuízos financeiros à entidade empresarial privada, ao passo que os prejuízos financeiros da maior parte das greves atuais se verificam em entidades públicas, cujos custos, mais tarde ou mais cedo, irão ser imputados aos contribuintes através do Orçamento do Estado;

  • tendo a entidade patronal como principal prejudicada e não, como agora, os utentes, que são bastante penalizados pelas limitações à sua mobilidade, pelas despesas já pagas em passes e, mais tarde, pela sua condição de contribuintes;

  • escolhendo como interlocutores dos grevistas da CARRIS os decisores da companhia, enquanto nas greves atuais, realizadas em sectores como os transportes, ensino ou saúde, a responsabilidade pela resolução desses conflitos fica, em última instância, diluída entre vários responsáveis – ministros, secretários de Estado, diretores, gestores públicos ou outros nomeados pelo governo, que frequentemente estão mais preocupados com a sua carreira e com a lógica político-partidária, esquecendo habitualmente a gestão económica, pois sabem que quaisquer cedências materiais, mesmo injustificadas, virão a ser suportadas pelo Orçamento do Estado.

A multiplicação de novos sindicatos e a vulgarização e sucessão de manifestações e greves em “carrossel” e “à la carte” causam crescente desconfiança, insegurança e significativos prejuízos aos cidadãos, acabando por virar a opinião pública contra a sua luta, uma vez que uma boa parte da população não pode correr o risco de perder dias de trabalho. Ironicamente, são as faixas populares socialmente vulneráveis que sofrem as consequências mais pesadas destes conflitos, já que as camadas economicamente desafogadas conseguem encontrar outros meios para contornar as paralisações.

As manifestações sob a forma de greve que se afirmam contra as privatizações, bem como as que exigem aumentos gerais de salários e pensões, destinam-se a fazer “prova de vida” de certas organizações político-partidárias. Têm contribuído para gerar mal-estar e desprestígio das lutas laborais pois têm cada vez menos a ver com as legítimas aspirações materiais dos trabalhadores, sendo dificilmente aceitáveis pela generalidade da população.

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O direito à greve é uma conquista civilizacional e um direito inalienável numa sociedade livre e democrática. Em Portugal, este direito é protegido pelo art.º 57º da Constituição, mas tem vindo a ser crescentemente contestado como um direito sacrossanto e absoluto que prevalece sobre o direito ao trabalho, pelo art.º 58º, o qual garante a todos os cidadãos os meios materiais indispensáveis a uma vida digna e saudável.

É sintomático escutar personalidades corajosas e genuinamente democráticas que propõem alterações compreensíveis e racionais ao direito à greve. São verdadeiras referências e arautos da consciência da sociedade civil e espelham as dúvidas e incompreensões da maior parte dos cidadãos perante este delicado e preocupante dilema.

O êxito duma greve só será convincente e eficaz se vier a obter mais benefícios materiais da entidade patronal sem alienar gratuitamente o apoio da generalidade dos cidadãos, evitando conflitos impopulares, especialmente entre as classes mais desfavorecidas.

A proliferação caótica de manifestações e movimentos grevistas, mesmo que legítimos, poderá contribuir progressivamente para encorajar a instalação de um regime musculado e autoritário que as faça abrandar ou parar, usando medidas de controlo como as conduzidas por países como a Hungria e a Polónia, regimes que vão contrariando progressivamente certos princípios básicos da democracia liberal. Os sinais para o começo de regimes autoritários nunca nos dizem como e quando acabam.