A fadiga da guerra na Ucrânia está a levar ao aparecimento dos que advogam a capitulação das democracias ocidentais perante a anexação por parte da Rússia de partes daquele país. Trata-se de pessoas e analistas influenciados pelas teses de Putin sobre a soberania limitada dos vizinhos que não se subordinam aos interesses estratégicos daquela grande potência. Procura-se também recuperar uma fraseologia pretensamente pacifista que no passado teve como objetivo principal o desarmamento unilateral do Ocidente Democrático face a uma União Soviética cada vez mais militarizada, sobretudo em termos nucleares.

A “Operação Militar Especial” foi encorajada pelas reações retóricas e bastante moderadas do Ocidente face à invasão da Geórgia, ocupação duma faixa da Moldova, rearmamento e nuclearização do enclave de Kaliningrado, satelização da Bielorrússia, dominação da Arménia, feroz repressão da Chechénia e outras movimentações militares e políticas no Médio-Oriente e em África. Na altura, a preocupação principal de vários países europeus foi assegurar um ambiente favorável às suas exportações para os promissores mercados de leste e conseguir energia barata para as suas economias. A resultante impunidade “de facto” deu ao Kremlin carta-branca para forçar a instalação dum regime ucraniano dócil, criando uma alegada faixa de proteção alargada, não se sabendo até onde nem quando. O ex-presidente Medvedev‎, que normalmente exprime o que Putin não diz em voz alta, falou “dos Urais a Lisboa”.

Para os derrotistas de boa-fé talvez fosse útil reverem as circunstâncias do Pacto de Munique, assinado por Hitler em 1938, pelo qual Chamberlain e outros líderes ocidentais procuraram satisfazer as exigências de Hitler, não evitando o começo da 2ª Guerra Mundial no ano seguinte.

Não se trata da defesa dum regime ucraniano com muitas e graves falhas, com pouca transparência, corrupção e até ideias de cariz nazi, aliás como na Rússia. Apenas se pretende apoiar a luta contra uma invasão unilateral e não provocada, levada a cabo por uma potência hegemónica, violando a soberania legitimada e reconhecida internacionalmente. Não se pretende o esmagamento da Rússia, mas apenas a retirada dos territórios ocupados.

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Apesar de não terem os seus filhos a morrer no campo de batalha, as democracias ocidentais estão a ficar crescentemente preocupadas com as consequências económico-sociais da guerra.

O pró-sovietismo e agora o “pró-russionismo” alimentam-se de um antiamericanismo primário e latente, baseado nas posições estadunidenses, frequentemente egoístas, que privilegiam prioritariamente os seus interesses políticos, económicos e militares. Mas a inviolabilidade das fronteiras reconhecidas pelas Nações Unidas é um objetivo compartilhado pelas democracias de ambos os lados do Atlântico, tendo até levado à rápida integração na NATO de países que lhe eram tradicionalmente avessos e defensores de uma neutralidade ativa. No passado tive muitas dúvidas sobre esta aliança, mas presentemente sinto-me muito mais confortável e seguro por Portugal a integrar e por verificar que não se trata dum “cadáver adiado“.

Anos de desinvestimento militar e tentativas frustradas para constituir um corpo militar autónomo no âmbito da Comunidade Europeia levaram a um cenário semelhante ao da 1ª e 2ª Guerras mundiais, onde a intervenção norte-americana foi decisiva para a derrota do imperialismo germânico e do nazi-fascismo.

A propaganda russa, para além da contrainformação, emite sibilinos avisos de holocausto nuclear, procurando assustar com o uso do “botão vermelho”. No entanto é altamente improvável que o Kremlin, a nomenclatura, os militares, os oligarcas e a classe dirigente aceitem “jogar à roleta russa” com as suas próprias vidas.

Agora que a Rússia está a sentir o aumento das despesas militares e o peso crescente das sanções ocidentais, a ameaça de cortar o apoio à Ucrânia por parte de alguns países europeus e do Congresso dos EUA é preocupante. É preciso pressionar o regime ucraniano para ser mais transparente e prestar mais contas sobre os apoios recebidos, mas concretizar um hipotético corte dos apoios seria, na prática, avalizar as anexações territoriais russas conseguidas nos últimos anos, dando tempo à Rússia para consolidar essas conquistas, corrigir erros e rearmar-se de novo. Ao ser-lhe vedado o acesso aos Mares de Azof e Negro, a Ucrânia ficaria economicamente debilitada e à mercê dos seus vizinhos, o que levaria a uma independência muito fictícia e instável.

A Europa democrático-liberal está agora a pagar a sua indiferença perante as iniciativas político-militares de Putin, na sua vizinhança, no Médio-Oriente, em África e noutros lugares. A Moldova poderia ser o próximo objetivo russo, visto já dominar a Transnístria, onde possui enormes depósitos de armamento. Outro objetivo poderia ser a consolidação da ocupação da Abecásia, onde os russos já estão a construir uma base militar, e a subordinação do regime georgiano. Poderia também olhar para os Países Bálticos, aguardando uma oportunidade de intervir. Se a anexação fosse consumada, a chefia político-militar chinesa, que tem assistido atentamente aos acontecimentos, também se poderia sentir encorajada a invadir Taiwan e a expandir o seu poderio militar e económico no Pacífico e noutras paragens.

A luta contra a invasão vai ser longa, difícil e dispendiosa, mas existe o perigo de um regime ditatorial, retrógrado e iliberal contagiar uma Europa fragilizada por um populismo crescente. Seria a destruição das democracias ocidentais em cuja liberdade gostamos de viver.