Se eu fosse dado a especulações psicológicas, arriscava-me a dizer que a sede de protagonismo do antigo primeiro-ministro é tal que, na impossibilidade de continuar na cena política, de regressar à liderança do seu partido e de se candidatar de novo a primeiro-ministro ou mesmo, porque não?, a presidente da República, Sócrates conseguiu ser o primeiro arguido a descobrir o truque de recusar a «anilha de ouro» para chamar a atenção sobre a sua condição de «vítima» de um sistema judicial do qual ele próprio é, juntamente com o antigo ministro da Justiça António Costa, um dos principais responsáveis… Quando a justiça pretendia, segundo as regras, suavizar a pena do arguido permitindo-lhe ir para casa e esperar o resultado das averiguações, Sócrates descobriu a maneira de fazer aquilo de que mais gosta: estar na ribalta! Mas não sou psicólogo…

Ao contrário daqueles que, por dever de ofício, fazem de conta que o caso Sócrates não é um caso politizado desde o princípio até ao fim, com inevitáveis consequências eleitorais, estou convicto de que o seu comportamento está na linha política e comunicacional que foi sempre a sua, a saber: a confrontação permanente e a busca sistemática de temas ditos fracturantes, que alimentassem o activismo de minorias acirradas de forma a sustentar um clubismo do tipo futebolístico na vida política: a favor ou contra, sem reflexão nem discussão.

Sócrates nunca teve o país na sua perspectiva. Só como mapa onde construir estradas, dar dinheiro aos empreiteiros e «criar empregos» que eram a outra face do desemprego actual. Aliás, o país é para ele uma coisa abstracta. O pensamento político de Sócrates nunca foi um pensamento, mas apenas vantagens e desvantagens momentâneas. Em áreas básicas como a saúde e a educação, tão depressa incentivou o conflito até à exasperação como abandonou os seus executantes (respectivamente, Correia de Campos e Maria de Lurdes Rodrigues) quando se convenceu que isso lhe valeria mais votos ou menos rejeições.

Foi isso – a ausência de qualquer política para o país; só para os lobbies – que lhe valeu perder a maioria absoluta oferecida numa bandeja pelo presidente Sampaio quando este promoveu, sucessivamente, a ascensão e a queda (em menos de 9 meses entre 2004 e 2005) de outra bizarra figura da nossa tragicomédia partidária, Santana Lopes, o eterno candidato… Consta que, a dada altura, o então mago da televisão do Grupo Impresa, o falecido Emídio Rangel, se gabava de fazer de um deles – ou de ambos – o primeiro-ministro de Portugal. Rangel acabou por ter razão ao apostar no crescente vírus do «protagonismo» num sistema eleitoral cada vez mais gasto e rejeitado pelo enorme partido dos abstencionistas…

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Clubismo e protagonismo são as duas faces da mesma moeda pseudo-carismática da política partidária portuguesa, tal como os «media» a concebem. Um exemplo disso é Paulo Portas, que não hesitou em tentar derrubar a actual coligação, correndo o país os riscos que corresse, mas o PP revelou-se menos clubista do que era para temer. Outro é o desse interminável clube dos ressentidos do PSD, há quatro anos defraudados pelo «protagonismo» indevido, segundo eles, de Passos Coelho (a recente adesão de António Capucho ao PS frisa o patético).

É este «protagonismo» alimentado pelas claques clubísticas dos partidos políticos que envenena o espaço público português, onde os carismas são, como se sabe, feitos e desfeitos na comunicação social. Até esta ultrapassar os seus próprios limites, como aconteceu manifestamente desde que o país se deparou com as bancarrotas deixadas por Sócrates e o seu «clube», desde a banca até às companhias majestáticas como a PT e a TAP. Perante estas duras realidades, os «media» bem-pensantes não hesitaram então em iniciar o bombardeamento clubístico contra o governo actual.

Ora, Sócrates fez mais do que ele próprio possivelmente se dá conta para criar esta situação. Foi a produção em massa de «clubes» disto e daquilo, verdadeiras centrais corporativas de contra-informação ao jeito socratista, que veio alimentar hoje a comunicação social com «narrativas» oposicionistas para todos os gostos, até porque a falta de dinheiro e a necessidade de contracção das benesses fizeram com que a maioria das corporações organizadas em torno do orçamento de Estado se sinta efectivamente frustrada, ao contrário do que sucedia antes. Pois se até os responsáveis de entidades pretensamente controladas pelo actual governo acreditam nas «narrativas» estatistas de antigamente, como o Director-Geral do Livro, que declarava há dias: «Os escritores devem ser apoiados directamente pelo Estado». http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/jose-manuel-cortes-os-escritores-devem-ser-apoiados-directamente-pelo-estado-1697829 !

A produção maciça de «protagonismos vitimizantes» é uma das piores sequelas da era Sócrates, que ele aliás não se cansa de insuflar com a sua «narrativa» pessoal. Imaginemos por um segundo que o antigo líder do PS estava à vontade para reconquistar o partido e candidatar-se de novo ao poder. Uma de duas coisas sucederia de certeza: afundar de vez o PS ou arruinar o país juntamente com a Grécia. Quem sabe se ambas. É o resultado da mania dos protagonismos!