O primeiro exercício de verdadeira resiliência para qualquer cidadão, seja simplesmente curioso ou de facto interessado, é mesmo ler as 147 páginas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que se encontra em consulta pública, vulgarmente conhecido como bazuca ou vitamina.

Não porque ao texto faltem boas intenções, porque esteja mal estruturado, ou que seja obscuro ou ininteligível. Nada disso. O que torna o exercício da sua leitura como um acto de resiliência, é ficarmos com a sensação de já ter lido os mesmos diagnósticos, as mesmas causas, as mesmas razões, as mesmas necessidades, as mesmas medidas, algures num passado recente e até não tão recente, que se fica com a ideia que o tempo só passa para cada um de nós, mas para o nosso país, deve ter parado algures numa quinta dimensão ou numa espécie de universo paralelo.

Experimentando ir às profundezas dos motores de busca, comparando o que consta no PRR como diagnóstico das maleitas da pátria e quanto às reformas para as suprimir, certamente as encontrará nos Planos de Fomento com João Salgueiro e António Martins no Governo do Prof. Marcello Caetano (para não irmos ainda mais longe ao Sr. Fontes Pereira de Melo); também as encontrará nas Grandes Opções do Plano da Dra. Manuela Silva no tempo já longínquo do I Governo do Dr. Mário Soares em 1977. Igualmente constam – até na parte climática e do ambiente com o Engº Carlos Pimenta — nos Governos do Prof. Cavaco Silva e mais recentemente no QREN e no Portugal 2020.

Apresentando como novidade, estilo do agora é que é, exactamente as mesmas medidas, com os mesmos métodos, com a mesma doutrina da liderança do Estado no desenvolvimento do país – opção que nisso, junta Marcello Caetano, Mário Soares, Cavaco Silva ou António Costa no mesmo “partido”, nunca conseguimos resolver, nem com um número astronómico de transferências comunitárias, as nossas insuficiências estruturais, a pobreza e as desigualdades. É também por isso, que ler o PRR é de facto um exercício de resiliência apreciável. Se a medicina fosse tão teimosa nas suas práticas, como o são as opções estratégicas dos nossos sucessivos governos, os médicos ainda estariam a fazer sangramentos para curar doentes.

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Vejamos apenas, porque o espaço não permite mais, dois aspectos específicos do PRR: combate à pobreza e renovação industrial. O que  nos indica o PRR como estratégia para o problema ainda hoje – inconcebível em 1986, quando entrámos na UE – da persistência da pobreza nos níveis em que estamos: O PRR propõe (entre parêntesis colocamos o executor da medida): melhoria do sistema de proteção social (Estado); criar uma Comissão (mais uma) para apresentar uma proposta  de Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (Estado); estimular e implementar politicas integradas de âmbito local (Estado); inclusão  social das comunidades desfavorecidas (executor desconhecido); melhorar a qualidade do espaço público (Estado); equipamentos sociais de apoio (Estado); combater o estigma (executor desconhecido); qualificação de adultos (Estado); regeneração das áreas socialmente desfavorecidas (Estado). Surgem apenas dois propósitos, não inteiramente dependentes do Estado no combate à pobreza: A articulação com o 3º sector para as soluções de combate à pobreza e exclusão social (note-se o preciosismo: é só articulação, nada de transferência de poderes) e o empreendedorismo de pequenos negócios de base local (note-se outro preciosismo: têm de ser pequenos). Admitindo que o Estado não quer ser sócio de quiosques, esta é a única medida de combate à pobreza em que não se vislumbra a intervenção directa do Estado. Pior que tudo isto, é que entre todos os diagnósticos e medidas propostas, inspiradas certamente numa sociologia da Sorbonne dos anos 60, não existe uma única referência à principal, essa sim sem dúvida, causa da pobreza: os baixos salários e a precaridade laboral. Nesse capítulo, zero de ideias apresentadas.

No capítulo da reforma da indústria, as medidas centram-se essencialmente no apoio à inovação e à Investigação e Desenvolvimento. Estas medidas já constam do QREN e do Portugal 2020, cujo plafond de subsídios, nem sequer conseguimos executar. A burocracia que envolve todos estes apoios, fará com que tudo fique rigorosamente igual. Apenas as grandes entidades industriais (e são tão poucas em Portugal) terão condições de acesso a estes fundos e neste quadro nem justifica afectar muitos milhões, pois não serão executados até 2026.

O PRR refere a baixa competitividade das empresas portuguesas (facto que o aumento das exportações até desmente) mas nada refere quanto ao facto de alguma da competitividade que resta, ainda se basear nos baixos salários.

O aumento em Portugal da chamada classe média é um factor fundamental para o crescimento da riqueza no pais e, portanto, uma das mais eficazes medidas de combate à pobreza. Para não entrar em explicações mais demoradas, vamos considerar que classe média é um agregado familiar onde, cumpridos todos os compromissos com habitação, mobilidade, educação, alimentação, vestuário e farmácia, se chega ao fim do mês ainda com algum dinheiro. Ora isto só se consegue com salários mais altos. Com os actuais salários da maioria da população é impossível em condições de dignidade.

A arte neste desígnio — aumentar o nível de vida dos portugueses — está em conseguir fazer crescer os salários, sem com isso inviabilizar as empresas. Ora sobre isso também não há estratégia alguma. É difícil e complicado? Sem dúvida. Mas não será para encontrar soluções para as coisas difíceis que elegemos os governos? E agora até existe uma ajudinha de 20 mil milhões para subsidiar essas questões difíceis. Ainda assim, o PRR nada contém para mudar o modo de vida no nosso país. O problema dos baixos salários em Portugal é tão relevante, que se fosse comparável com a pandemia, não resolver esta verdadeira entropia nacional, é como se não tivéssemos vacina. Para essa necessária revolução no tecido social e empresarial, o PRR deveria trazer ideias e propostas e não tem uma que seja. Assim sendo, ficamos já avisados: em 2026 tudo como dantes, quartel general em Abrantes. Como diria Vasco Santana, obrigadinho.