Não sou licenciado. A necessidade de começar a trabalhar cedo e a escolha que fiz pelo jornalismo quando ainda nem havia cursos nessa área em Portugal afastaram-me do ensino superior. Tal não me impede de considerar que o estudo académico é fundamental numa sociedade, não apenas para qualificar gerações, mas também para desenvolver a ciência, a tecnologia e o pensamento.

Qualifiquei-me, por isso, por outras formas e por várias vezes tenho sido convidado a dar aulas e palestras em ambiente académico. Sempre digo a quem me escuta, que teria ganho muito em ter tido outra base de formação, mas que isso não é tudo.

Na verdade, em Portugal raramente a Academia é lugar de pensamento e inovação, sobretudo no domínio das humanidades. Das teses que leio e do que conheço, a qualificação para a prática é geralmente débil, havendo muito pouca interação com a indústria, com o mundo real e com o mercado do trabalho. O desenvolvimento e inovação são quase proibidos, tal a obrigatoriedade de seguir, copiar, citar e obedecer ao pensamento de outros ou simplesmente às idiossincrasias dos Senhores Professores Doutores, habituados a exercer prepotências e pequenos poderes. Pensar e discordar é quase proibido na Academia em Portugal, princípio que se está, por osmose, a transmitir a todas as áreas da nossa vida pública.

Em matéria de comunicação, é consabido que há muitos anos a Universidade do Porto (UP) é uma lástima. Com uma imagem insípida e nada contemporânea, com websites obtusos que parecem construídos para dificultar a consulta de procedimentos e com uma relação com o exterior que obedece a uma lógica de fechamento, o processo de comunicação da UP foi construído à imagem e semelhança dos tristes “académicos” que, na lógica de carreirismo político e do “princípio de Peter”, chegaram à direção de comunicação da Reitoria. Teóricos ou nem isso, que em permanente e promíscua acumulação de funções, aproveitam o título de Senhor Professor Doutor para fingir que sabem alguma coisa de comunicação e, pelo caminho, vão desgraçando clientes e simultaneamente o prestígio da própria Universidade, onde muitas vezes nem os pés põem.

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Esta semana, contudo, um aluno do curso de design da UP chamou-me a atenção para um absurdo que, enquanto profissional (não licenciado), não posso calar. O Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) e o Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto), integrados na UP, lançaram recentemente um concurso para a criação de um logotipo.

O concurso é aberto a todos os que queiram participar e mesmo aos que acham que sabem fazer bonecos. Não é exigida qualquer formação na área do design, currículo, experiência anterior ou qualificação. Não é apresentado qualquer briefing aos candidatos. Não se exige ou admite qualquer memória descritiva do trabalho nem está prevista a defesa ou apresentação pessoal do trabalho. Cada candidato pode apresentar três!!! (3) propostas, isto é, três “bonecos” diferentes, a que chamam “logotipos”. Ou seja, cada um pode achar que a imagem de uma Faculdade e de um Centro Hospitalar deve ser este ou também aquele ou ainda aqueloutro. Os “bonecos” em causa devem ser enviados através de um simples email. Um júri (que não sei quem é) escolherá o “boneco” vencedor. O vencedor ganhará um vale de compras de 500 euros no El Corte Inglés.

Ora, todo este procedimento é uma espécie de insulto a todos os profissionais do setor, à ciência, à Academia, mas também à contratação pública. Sim, é que a UP é uma entidade pública, financiada por todos nós e pelas propinas dos estudantes. Está legalmente obrigada ao cumprimento da Lei da Contratação Pública, que de forma alguma admite vários ou mesmo todos os aspetos desta espécie de concurso. Seria demasiada extensa a lista de irregularidades invocáveis, mas desde logo são inexplicáveis a completa ausência de anonimato na forma de apresentar as propostas, a opacidade ou mesmo ausência dos critérios de escolha e a não existência de um caderno de encargos. Para não falarmos do pagamento dos honorários com um “vale a ser usado no El Corte Inglés”!

Mas a questão vai muito além da gritante irregularidade jurídica do processo, que em boa verdade é a que menos me interessa. Este bizarro caso do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) e do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto), que é um digníssimo e importante hospital da cidade, é a ponta do iceberg da falta de respeito que existe em Portugal pelo design e pelos seus profissionais. A UP possui dentro da sua estrutura uma excelente Faculdade de Belas Artes, tem uma prestigiadíssima escola de Arquitetura e uma grande escola de Design, não pode sujeitar-se a processos de confrangedor amadorismo, que são eles próprios um insulto e um desrespeito por um setor e por profissionais que, com ou sem curso superior, desenvolvem o seu trabalho com honestidade, esforço e competência.

E tem uma imagem corporativa, algo que não se compadece com a proliferação de “logotipos” contratados a granel e honorários pagos em vales do El Corte Inglés.

Pior, segundo o mesmo aluno que me informou sobre este processo, antes de lançar esta “call” (como agora se diz), o mesmo instituto tinha pedido à Faculdade de Belas Artes ajuda para, com os estudantes da casa e a supervisão de Professores, fazer exatamente o mesmo trabalho. Aparentemente, o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) “não gostou” do resultado, descartando assim a produção interna da Universidade, dos seus prestigiados Professores e dos seus bons alunos e decidiu, agora, lançar este vergonhoso e inadmissível procedimento.

Imagine-se o que seria a Faculdade de Belas Artes pedir ao Centro Hospitalar Universitário um médico para consultar os seus professores e alunos, recusar a sugestão que lhe fosse dada e colocar no seu website um anúncio para admitir um médico, passando por cima da sua congénere em medicina e pedindo que os candidatos apresentassem propostas por email para exercer o cargo sem explicar quais seriam as funções concretas, não lhes pedindo nem diploma, nem currículo, nem experiência anterior e oferecendo-lhes o pagamento em vales do Continente ou do Pingo Doce,

Pois é isto que a UP está a fazer através do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) e do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto), com profissionais da comunicação, cuja dignidade profissional é a mesma dos médicos e dos Senhores Professores Doutores, que tanto prazam os seus próprios canudos, menorizando todos os que (ainda) não os têm e, pelos vistos, mesmo os que os têm, mas são da área de formação do design e da comunicação.

Estas práticas, desrespeitos, ignorâncias e prepotências não se esgotam na UP. Na verdade, muitas são as entidades públicas e privadas em Portugal que tratam a comunicação, o design e o branding com os pés. Pior do que isso, fazem-nos com os pés de diretores, CEO´s ou Presidentes que, sendo muitas vezes artistas, engenheiros ou juristas, acham que tudo percebem de comunicação. Como se pudesse também eu, comunicador, desatar a liderar projetos de construção de pontes ou a gerir blocos operatórios, por achar que percebo disso, passando por cima de engenheiros, arquitetos e médicos e lançando concursos à minha maneira, por email.

A ideia de que todos percebem de futebol e de comunicação tem de facto em Portugal o seu lugar de esplendor. São raros os casos em que as marcas perduram e lhes é dado o tempo necessário a que se entranhem no público e ganhem a patine e o reconhecimento das grandes marcas internacionais, como a Shell, a Gillette ou a Coca Cola, quase imutáveis durante décadas. Raramente os processos para a sua conceção são produzidos partindo de briefings minimamente consistentes e lógicos. Raramente quem pede um “logotipo” sabe explicar por que o quer e do que precisa ou entrega o processo nas mãos de que sabe.

As marcas em Portugal parecem mais ser instrumentos de uso pessoal ou político, procurando satisfazer agendas paralelas, raramente trazendo valor aportado ao produto, ao serviço ou à instituição. Regra geral, cada direção, cada presidente, cada ciclo eleitoral, determina novo design, novo procedimento, nova assinatura, novo “logotipo” e novos custos. Tudo funciona na lógica do egoísmo, baseado na iliteracia gráfica de quem decide. E quem tem dificuldade em se afirmar pelo trabalho ou pela obra, sempre procura na assinatura gráfica uma qualquer dimensão de visibilidade. Quer “um logotipo” e que, de preferência, seja feito de graça, menorizando o valor do trabalho, do estudo, da experiência, do talento e do conhecimento de designers e criativos.

Quando em 2014 lancei o processo de conceção da marca “Porto.” – marca que não existia para além da proliferação anárquica dos tais “logotipos” que resultavam de uma lógica de quintas que existia por toda a autarquia do Porto – comecei por construir um briefing objetivo e lógico, dirigindo convites a designers experientes num princípio de consulta ao mercado dentro dos limites que a contração pública permitia. E falei com quem sabe. Mas, apesar do enorme e imediato sucesso pós lançamento, logo experimentei uma sensação agridoce. Por um lado, uma parte da Câmara Municipal do Porto e da Cidade quis de imediato aplicar o “Porto.” a tudo, tal a recetividade e força intrínseca do trabalho que foi apresentado. Por outro, determinados setores dentro da própria autarquia logo procuraram contornar a nova marca e destruí-la, lançando pequenos procedimentos à revelia da direção de comunicação e até da presidência e procurando usar o design como instrumento para a sua própria assinatura e afirmação e, por vezes, distribuição de dinheiro.

Como compreender, por exemplo, que o renovado Cinema Batalha, agora nas mãos da Câmara Municipal, tenha também lançado “uma call” para a criação de uma “identidade corporativa”, cujo custo ultrapassou largamente o da marca “Porto.”? O resultado desse pseudoconcurso foi a produção de uma “identidade” ilegível para o Cinema Batalha que dia 9 de Dezembro deverá abrir e que se desliga da marca da cidade e do Município que é quem paga a enorme e pornográfica conta do projeto.

Basta ler os documentos do procedimento de contratação para a conceção desta nova “identidade” do Batalha para se perceber que neles não existe, numa linha que seja, uma referência à marca “Porto.” e à necessidade de convivência com esta. Ou seja, não se está a tentar promover nada de uma forma coerente e entendível pelo público. Está-se a tentar destruir, apartar, autonomizar. E, claro, assinar. Sempre assinar.

Não sendo o Cinema Batalha, a Galeria Municipal ou os Museus da Cidade do Porto corporações, pois eles pertencem ao Município, por que razão precisaram todas estas estruturas de “identidades corporativas” e que nelas tenham sido gastos (no seu conjunto) centenas de milhar de euros, quando a marca “Porto.” tem previstas derivações e adaptações? A explicação é a mesma de sempre. A lógica de quintas e a iliteracia do sapateiro que acha saber tocar rabecão.

O que mais pode justificar que até programas municipais de apoio, sem qualquer expressão pública, como o Plaka, o Criatório, In Residence, Shuttle, Anuário, Aquisições, todos pagos pela Câmara do Porto e no seu conjunto representam milhões de euros de impostos gastos, tenham a sua própria “identidade gráfica”, elaborada após o lançamento da marca “Porto.”, assim se desligando do Município? Quantos dos leitores desta crónica, alguma vez, deu conta da sua existência ou ouviu falar destes programas ou, contactando com a sua imagem, os identifique como sendo municipais?

O concurso para o logotipo do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto (ICBAS) e do Centro Hospitalar Universitário do Porto (CHUPorto), que está a indignar os alunos que recentemente trabalharam num processo aparentemente sério de criação, que foi descartado sem se saber porquê, replicando custos, tempo e talento, não é por isso um caso isolado de desrespeito pelo trabalho sério de profissionais. É uma prática comum na cidade do Porto e no País, o que incluiu Universidades e Municípios.

Este caso só tem o acepipe de incluir como forma de pagamento dos honorários com “vale do El Corte Inglés” que, pensando bem, talvez motive a que ponha cá em casa toda a gente (até a minha magnífica gata Olívia Maquineta) a enviar emails com propostas de logos feitos no Paint e que seriam ótimos, todos eles, para qualquer Instituto de Biomédicas e para qualquer Centro Universitário Hospitalar. É que 500 euros davam mesmo jeito para umas compras de Natal.