Nos últimos dias levantaram-se fundamentalmente quatro grandes dúvidas sobre a forma como está a ser gerida e fiscalizada a parte do Novo Banco que exige recursos do Estado e que a prazo serão pagos por todos os bancos. Está o banco a vender esses activos a partes relacionadas, ou seja, vendedores e compradores são praticamente os mesmos? Está o banco a fazer tudo o que pode para vender a bom preço esses imóveis e carteiras de crédito malparado? Estão os activos bem avaliados? E, finalmente, pode ou deve o banco conceder crédito para o comprador lhe adquirir os activos?

Este conjunto de quatro grandes dúvidas pode ser identificado na entrevista que o líder do PSD Rui Rio dá a Vítor Gonçalves na RTP, numa linha que já vinha de trás e reforçada por duas investigações do jornal Público. A primeira investigação de Cristina Ferreira  na qual se revela que os imóveis da carteira Sertorius foram vendidos em 2019 a um fundo, o Cerberus, com o qual o actual chairman do banco já teve ligações indirectas. A segunda investigação de Paulo Pena revela, entre outras coisas, como a criação de sociedades intermédias, que a carteira de imóveis Viriato é vendida em 2018 à Anchorage, sem que se consiga identificar o último beneficiário. As duas vendas foram feitas com perdas para o Novo Banco e justificaram parte do montante de capital que o Fundo de Resolução teve de injectar no banco, no quadro do acordo de venda ao Lone Star.

Na sequência das dúvidas levantadas por Rui Rio e ainda antes da divulgação da investigação de Paulo Pena, o primeiro-ministro enviou uma carta à Procuradoria-Geral da República solicitando que fossem travadas novas vendas de activos até que a auditoria ao Novo Banco fosse conhecida. Também o Novo Banco revelou, na mesma altura, 27 de Julho, ter entregue à PGR a documentação sobre a venda de imóveis. Entretanto a auditoria da Deloitte que abrange os anos de 2000 a 2018 acabou por não ser entregue dia 31 de Julho como o ministro das Finanças tinha imposto.

Estes são os mais recentes desenvolvimentos que envolvem o Novo Banco. Quem pensava que o caso de fechava como na Primavera de 2019 com ordens de auditorias enganou-se. Este ano o Novo Banco ia desencadeando a saída prematura de Mário Centeno do Ministério das Finanças, porque o primeiro-ministro pensava que só se pagava as necessidades de capital depois da auditoria. E lemos ainda uma declaração de António Ramalho em entrevista ao Negócios e à Antena 1, no início de Junho, dizendo que o banco ainda ia precisar de mais dinheiro que provocou uma verdadeira tempestade, agravada pelo próprio banco com a reacção que teve.

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Feito o contexto vamos olhar para essas quatro questões.

1 A dúvida que pode ter contornos criminais está relacionada com a venda a partes relacionadas. Esta é, contudo, a dúvida que parece mais fácil de ser desvanecida se o último beneficiário das vendas for divulgado. O Novo Banco diz que sabe quem é, e rejeita que tenha sido realizada qualquer venda a partes com interesses do seu accionista. Se o Novo Banco não estiver a cumprir esta regra estará a violar os termos do contrato de venda.

Mas nesta matéria mantém-se a dúvida sobre o escrutínio que deveria ser feito pelo Fundo de Resolução. Qualquer venda dos activos classificados como tóxicos e que estão cobertos pela garantia de 3,89 mil milhões de euros, sejam imóveis ou crédito, é avaliada pela Comissão de Acompanhamento – da qual faz parte José Bracinha Vieira e José Rodrigues de Jesus – e pelo Fundo de Resolução, presidido pelo vice-governador do Banco de Portugal Luís Máximo dos Santos.

As duas operações, Viriato e Sertorius, tal como as vendas de crédito malparado, foram aprovadas por essas entidades. Aparentemente não verificaram quem era o último beneficiário da compra, para validar se se está ou não perante um negócio entre partes relacionadas. Resta acreditar na palavra das partes envolvidas, admitindo que os riscos que corriam os impede de fazer isso. Mas fica igualmente uma lição: o escrutínio pode e deve ser feito de forma mais aprofundada.

2 Está o banco a fazer tudo o que pode para vender a bom preço esses imóveis e carteiras de crédito malparado? Esta é uma dúvida mais complicada e sujeita a avaliações que podem ser subjectivas. Mas é aquela que coloca questões não só de senso comum como de gestão.

Uma das perguntas é: porque cria o banco carteiras com tantos imóveis? Uma carteira muito grande de imóveis traduz-se necessariamente num desconto mais elevado sobre o seu valor e reduz o número de potenciais compradores. Essa foi uma das dúvidas levantadas por Rui Rio.

A resposta a essa questão pode estar na estratégia do accionista Lone Star de acelerar o processo de limpeza do banco para o vender o mais depressa possível. A carteira de activos cobertos pelos 3,89 mil milhões de euros, que começou com 7,9 mil milhões de euros, encerrou o ano de 2019 com três mil milhões de euros, de acordo com dados divulgados pelo banco. Para estes três mil milhões de euros existem apenas 912,3 mil milhões de euros que podem ser cobertos pelo Fundo de Resolução.

A intenção de manter a mesma velocidade de limpeza do banco foi reafirmada pelo chairman do Novo Banco, Byron Haines, em entrevista ao Jornal Económico (só para assinantes com um resumo aqui),  revelando assim que a estratégia do Lone Star não se alterou com a pandemia. Antes da pandemia, as informações que existiam apontavam no sentido de a Lone Star querer vender o banco em 2021, o mais tardar em 2022.

Naturalmente que o facto de querer limpar o banco o mais depressa possível leva à concentração de grandes quantidades de activos o que, por sua vez, acaba por resultar em descontos mais significativos. É uma estratégia errada? Manteria o Lone Star esse caminho se não tivesse os recursos do capital contingente? Não sabemos.

Sabemos é que a estratégia de limpeza lenta dos balanços foi uma receita seguida no quadro da troika e não deu bons resultados. Países como a Irlanda que limparam de uma só vez os seus bancos libertaram-se do problema, enquanto nós continuamos com a herança do passado.

A manutenção da velocidade de limpeza do banco significa mais vendas de activos este ano com perdas que levariam à injecção dos restantes quase mil milhões de euros em 2021, por parte do Fundo de Resolução.  Para já as vendas estão suspensas até à divulgação da auditoria. Mas a questão é: irá o Novo Banco regressar a essas vendas?

Se as vendas se mantiverem, na Primavera do próximo ano teremos mais um drama, como aconteceu em 2019 e 2020. Na altura estaremos a viver, em pleno, os efeitos económicos e financeiros da pandemia com os níveis altos de desemprego, de falências e de crédito malparado. Imagine-se em plena crise a notícia de que o Governo passa um cheque de 850 milhões de euros ao Fundo de Resolução para fazer entrar pouco menos de mil milhões de euros no Novo Banco. Com a fúria que existe contra os bancos vai ser muito difícil de explicar.

É, por isso, de admitir que o Governo veria com bons olhos uma alteração da estratégia do Lone Star: uma limpeza mais lenta. Se não vender mais nada este ano poderá chegar à Primavera de 2021 e oferecer ao Governo o presente de dizer que não precisa de capital ou que precisa de muito pouco. Voltará às limpezas em 2021 atirando a conta para 2022. Seria uma pausa na limpeza, um adiamento da estratégia. Um caminho que agradará seguramente a António Costa que já se está, com certeza, a ver-se embrulhado no Novo Banco, outra vez, na Primavera de 2021.

3 Estão os activos bem avaliados? Ou, como é possível perder dinheiro com a venda de imóveis quando o mercado se valorizou tanto? Esta é a terceira grande dúvida que tem sido lançada nestes últimos dias e que é suscitada pelo elevado desconto a que os imóveis estão a ser vendidos.

O elevado desconto a que têm sido vendidos os imóveis pode ser explicado pelo facto de se estar a fazer pacotes de grandes quantidades, juntando o que dificilmente se venderia com activos mais valiosos. Caso o banco tenha activos de muito má qualidade essa até é a melhor estratégia. E esse parece o caso a acreditar nas palavras do chairman do Novo Banco na entrevista já citada: “Tenho 25 anos de experiência na indústria financeira e a qualidade de alguns activos foi a pior que vi na minha vida profissional”.

Mas Rui Rio argumentou que uns podiam ser maus e outros bons, não podem é ser todos. O que pode então explicar esses descontos? A única hipótese está no valor a que estão contabilizados no banco, ou seja, estão de tal forma sobreavaliados que não há valorização do mercado imobiliário que lhe valha. E esse pode bem ser o caso.

Recorde-se o que o primeiro-ministro, ao lado do então ministro das Finanças Mário Centeno, disse quando anunciou a venda do Novo Banco. Como se pode ouvir na RTP (ao minuto 28), quando questionado sobre as razões da não nacionalização do banco, António Costa disse que o Estado teria de injectar de imediato 4 a 4,7 mil milhões de euros correspondentes às necessidade imediatas de capital e a todas as eventuais necessidades futuras. No cenário de venda, o Lone Star injectou mil milhões e as necessidades futuras ficaram limitadas a 3,89 mil milhões.

Repare-se bem nas contas: a nacionalização exigiria uma limpeza imediata do banco correspondente basicamente à soma do capital contingente com o valor do aumento de capital realizado pelo Lone Star. Ou seja, as imparidades seriam registadas de imediato e não à medida que os activos fossem vendidos.

Isto leva-nos a concluir que a venda do Novo Banco foi em tudo semelhante à do Banif, em que o Estado pagou para o Santander lhe ficar com o banco. Neste caso, como as verbas eram muito elevadas, sem capacidade orçamental para as absorver, o que se está a fazer é a pagar a prestações ao Lone Star.

Uma razão forte para os descontos a que estamos a assistir nestas vendas é, assim, os imóveis estarem sobreavaliados no balanço do banco, com o conhecimento e a aceitação implícita de todas as partes. Daí que nada do que se está a passar possa causar estranheza nem ao primeiro-ministro nem ao Banco de Portugal. (Coloca-se é a questão sobre as contas do banco: retratavam verdadeiramente a sua situação patrimonial?)

Foi a solução possível dadas as restrições financeiras do Estado para evitar a liquidação do banco, como aliás o primeiro-ministro também explicou na altura. O problema é que nada disto pode ser explicado assim sem provocar grande revolta, em grande parte por responsabilidade dos próprios políticos, incapazes de explicar que não se estão a salvar bancos mas sim depósitos.

4 A última dúvida: pode ou deve o banco conceder crédito para o comprador lhe adquirir os activos? Estão a fazer o mesmo que Ricardo Salgado e outros bancos como a CGD? É, de facto, enorme a tentação, e pode até ser útil para algumas pessoas, dizer que é tudo igual, mas não é. O que Ricardo Salgado fez foi construir um universo paralelo, delapidando o banco para transferir dinheiro para o grupo familiar. O que aconteceu na CGD foram casos de concessão de crédito em que se assumiram riscos excessivos, como por exemplo no caso de Vale do Lobo.

Na concessão de crédito, neste como noutros casos, o que o Novo Banco deve fazer é reduzir o risco ao mínimo para que no fim da linha esses activos não acabem outra vez no balanço do banco. Se o fez, então a situação que tem hoje é melhor do que tinha antes. Neste momento deixou de ter esses imóveis não rentáveis (NPA) no seu balanço, registou a perda, recebeu capital e, ao mesmo tempo, deixou de ter os custos administrativos e de manutenção dos imóveis e aumentou as suas receitas por via dos juros do crédito que concedeu, ou seja, a sua conta de exploração melhorou.

Claro que subsistem muitas outras dúvidas. Uma delas é se a gestão do Novo Banco está a gerir o banco como os seus concorrentes, que desenham estratégias que minimizam as exigências de capital ou se, pelo contrário, sabendo que tem a almofada do capital contingente, não tem esse cuidado. Não se conhecendo o contrato de venda, espera-se que esteja desenhado no sentido de criar incentivos aos gestores para minimizarem as necessidades de capital. E esses incentivos poderiam inclusivamente estar criados através da indexação a eventuais prémios.

O Novo Banco não tem sido um exemplo. O caso que está em tribunal arbitral, opondo o banco ao Fundo de Resolução, por terem solicitado o fim do regime contabilístico que tinham, gerou desconfiança entre as partes, tal como o pedido de verbas para pagar prémios. Mas dito isto, o que se está a passar é incompreensível, uma vez que nada de verdadeiramente novo aconteceu e o Governo conhece bem o negócio que fez e porque é que o fez.

Quem ganha com este caos? Ricardo Salgado e todos quantos acham que a resolução e depois a venda foram um erro, sem se questionarem sobre qual seria a solução alternativa. Seria a CGD ter emprestado dinheiro ao BES como Ricardo Salgado queria e foi pedir a Pedro Passos Coelho? A nacionalização? Que nos teria criado problemas orçamentais? A liquidação com perdas para os depositantes?

É mais fácil identificar desde já um perdedor, o da confiança no sistema financeiro e na banca em geral. Não se pode ou, pelo menos não se devia continuar a alimentar este ódio aos bancos e esta desconfiança em relação ao sistema financeiro. Tanto mais que a breve prazo será abalado pela crise.

Fazer do Novo Banco o campo de batalha político-partidário é um erro. As razões podem ser muitas, desde salvar o mais possível Ricardo Salgado, a condicionar Mário Centeno no Banco de Portugal ou atacar o primeiro-ministro, mostrando que sabia tudo e deixou andar. Ou até obrigar o Lone Star a alterar a sua estratégia, vendendo mais lentamente os activos. Mas o custo desta gritaria em praça pública pode ser elevado, estamos a brincar com o fogo. O que precisamos para o Novo Banco é um escrutínio mais apertado e transparência nas decisões. E, na actual conjuntura tão difícil, uma estratégia de limpeza do banco mais lenta para poupar algum dinheiro ao Estado, nem que seja no curto prazo.