Veio a público na semana passada a decisão do Tribunal de Contas que relevou as responsabilidades financeiras associadas à prática de infrações atribuídas à Diretora-geral de Saúde, Dr.ª Graça Freitas, no âmbito de três campanhas publicitárias da Direção Geral de Saúde (DGS) e que se traduziam no pagamento, pela própria, de multas que, somadas, poderiam variar entre os 7.650 € e os 55.080,00 €.
O Relatório de Auditoria n.º 11/2023 (2.ª Secção), que identifica as referidas infrações, tem por objeto as campanhas de publicidade institucional do Estado e pode ser consultado no site do Tribunal de Contas, sendo possível concluir, pela leitura do Relatório, que a prática de infrações financeiras é imputada a vários outros dirigentes de diversos serviços e empresas sob a administração do Estado, com as mesmas consequências, apesar de a comunicação social apenas fazer referência à Dr.ª Graça Freitas.
O tratamento especial dado à Dr.ª Graça Freitas fica, certamente, a dever-se ao facto de ser uma pessoa conhecida pelos portugueses, atrevo-me a dizer acarinhada por estes, que durante meses entrou nas suas casas, num momento singular das suas vidas, que ficará na memória de todos.
Numa altura em que havia mais dúvidas do que certezas, foi o rosto técnico da saúde em Portugal, tomou as decisões necessárias e deu-nos a confiança e o alento possíveis, tendo sido, e bem, condecorada, recentemente, pelo Presidente da República, com a Grã-Cruz da Ordem do Mérito.
Mas essa mesma Dr.ª Graça Freitas poderia ter de pagar do seu próprio bolso uma multa que poderia chegar a 55.080,00 € caso, sorte a sua, o Tribunal de Contas não tivesse relevado as infrações que terá cometido.
E por infração financeira entenda-se o não cumprimento de uma qualquer disposição legal, escondida num qualquer diploma entre as centenas produzidos pela Assembleia da República, uns atrás dos outros (é ler o Relatório…), numa ânsia legislativa que não encontra limites, produzindo, ininterruptamente, diplomas e regulamentos, a que se vem juntar a chamada “jurisprudência” e, claro, sempre que existe a mais ínfima margem para tanto, as interpretações à Lei, a que os vários Tribunais se dedicam.
Basta alguma empatia para imaginar e lamentar o que sentirá um funcionário público de carreira, que atingiu o mais alto cargo da carreira dirigente do Estado Português e que, de repente, se vê mencionado num relatório elaborado pelo Tribunal de Contas como um infrator financeiro, responsável por ilegalidades tão graves que merecem ser sancionadas com uma multa, que no mínimo, corresponde a duas vezes o seu salário bruto e, no máximo, a catorze vezes o mesmo.
Ou talvez não haja empatia, pois há na sociedade portuguesa um preconceito enraizado contra aqueles que detêm cargos de direção no Estado, fruto da crença de que quem chega a esses lugares só o pode ter conseguido porque pertence a um partido, é amigo deste ou familiar daquele… é um privilegiado. Assim, se tiver de pagar uma multa, até é bem feito.
A Lei reflete esse preconceito estando pejada de punições por tudo e mais alguma coisa, partindo do princípio de que grande parte dos dirigentes do Estado é, no mínimo, incompetente e desleixada, obrigando o legislador a prever um conjunto infindável de regras e consequentes penalizações quando estas não são cumpridas.
Tais penalizações, determina a Lei, são pessoais e intransmissíveis, sem cuidarem de perceber que Portugal não é uma autocracia burocrática em que o dirigente toma decisões sozinho, sem qualquer parecer técnico de suporte e que a generalidade das decisões que assume são tomadas no final de uma cadeia formada por inúmeras tarefas, sobre processos integralmente formados por terceiros como, aliás, acontece em todas organizações de maior dimensão, sejam públicas ou privadas.
E esses terceiros erram, entre outros motivos porque são humanos e porque, como se costuma dizer, só não erra quem não trabalha…
Desconhece a sociedade portuguesa que a generalidade dos serviços públicos padece de graves carências em matéria de recursos humanos e tecnológicos, está refém de legislação complexa, vasta e pesada, demasiadas vezes desapegada da realidade, tem cada vez mais trabalho e trabalho de maior complexidade, não tem qualquer meio de premiar os seus melhores, tem uma média de idades elevada, sem expectativa de captar jovens, muito menos talentosos… pelo menos num futuro próximo, enquanto pagar pouco mais de 1.100 euros brutos a um licenciado em início de carreira.
Nesse contexto, é lícito perguntar a que propósito deve um dirigente pagar, a título pessoal, multas que podem ascender a milhares de euros devido ao incumprimento de uma qualquer recôndita norma legal, ainda que desse incumprimento não resulte prejuízo para o erário público e que o incumprimento verificado não resulte da sua ação direta e/ou individual.
É preciso passar pela experiência de ser dirigente de topo da administração pública, num cenário como este, para compreender o quão difícil é gerir no Estado, quanta energia e resiliência é preciso para mudar qualquer coisa e o risco inerente a uma qualquer decisão, nomeadamente em matéria de contratação pública, onde a produção e alteração legislativa e a quantidade de “entendimentos” e opiniões sobre tudo e mais alguma coisa é uma inescapável constante.
Acontece que nem todas as opiniões têm o mesmo peso e importância, sendo o Tribunal de Contas a entidade com maior poder em Portugal quando está em causa a conformidade da despesa pública e, consequentemente, aquela com maiores responsabilidades, competindo-lhe compreender o alcance das suas decisões e o impacto das mesmas no funcionamento dos diversos serviços e entidades a quem compete gerir o país.
Aqui chegados, cito Eça de Queirós, quando, n´Os Maias, a personagem Carlos da Maia pergunta a Tavira, que trabalha no Tribunal de Contas, “que diabo se faz no tribunal de contas?”, recebendo, como resposta, que no Tribunal de Contas “Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo… Até contas!”.
Acrescento à resposta do Tavira que o Tribunal de Contas, com o seu zelo na aplicação de sanções, também contribui para um clima de receio e incerteza que contamina a capacidade de decisão de muitos dirigentes que, em detrimento de decidir baseados apenas no interesse público, como é seu dever, optam por uma postura auto defensiva, preocupados sobretudo em decidir de forma a evitar hipotéticos problemas futuros para si próprios, ainda que essa decisão não seja aquela que melhor serve a gestão do Estado e de seus recursos.
Difícil será criticá-los, mas a verdade é que este estado de coisas só vem agravar o mau funcionamento da máquina do Estado, tornando tudo mais moroso, porque a prudência consome tempo, tempo esse desperdiçado em processos sucessivos de validação, com os serviços da administração pública a trabalharem uns para os outros, gerando necessidades constantes de reforço de meios humanos, sem que isso tenha qualquer efeito na qualidade do serviço prestado ao cidadão.
Outro efeito é o desincentivo à adoção de soluções inovadoras, especialmente em matéria de contratação, que aproveitem as possibilidades que a Lei prevê, desde que lida e interpretada com base nos princípios que norteiam a administração pública e não com base em interpretações cegamente conservadoras, mascaradas de «rigorosas» para parecer bem, mas que mais não fazem do que espartilhar a ação dos serviços públicos, sem qualquer benefício efetivo que se perceba.
Bem aventurados aqueles cuja função é comentar e escrutinar o trabalho dos outros, a quem não é pedido qualquer outro esforço que não o de concordar, criticar ou recomendar sobre as decisões de terceiros.
Sendo cada vez maior o número de entidades que se dedicam a tais desígnios e menor o daqueles a quem cabe a dura tarefa de gerir o Estado, defender dirigentes de topo da administração pública resulta numa tarefa difícil e pouco apelativa, mas alguém tem de o fazer.
Bem mais fácil é o populismo das soluções simplistas e panfletárias, que apelam à penalização dos dirigentes que erram ou que tutelam quem erra e promovem a produção de leis que acumulam regras totalmente ingeríveis, tamanho é o seu número e dispersão.
Só teremos um Estado eficiente, prestador de serviços de excelência, compatíveis com os impostos pagos pelos portugueses, quando se fizer uma verdadeira reforma da administração pública.
Até lá, nomeie-se os seus dirigentes com base exclusivamente em critérios de competência e idoneidade, aumente-se as penas para os corruptos, preveja-se o agravamento das penas para titulares de cargos dirigentes do Estado e, sobretudo, julgue-se rapidamente aqueles que utilizam o Estado em proveito próprio e deixe-se os outros trabalharem sossegados.
Pelo caminho, crie-se menos leis, torne-se claras as que seja inevitável criar, assim como todas as que já existem, altere-se as leis que, de forma desproporcional, castigam quem trabalha, dê-se condições aos dirigentes da administração pública para que possam trabalhar sem receio de errar, focados em objetivos exclusivamente direcionados para a defesa do interesse público e a prestação de melhores serviços aos portugueses, caso contrário, qualquer dia não há quem queira ser dirigente na administração pública, pelo menos aqueles que o Estado e os portugueses deveriam ter interesse em ter como dirigentes.
Defender a despenalização pessoal de dirigentes não é popular, bem sei, mas como muito oportunamente lembrou o Prof. Cavaco Silva, a popularidade não é tudo e mais digo eu que, em alguns casos, a verdade é tudo menos popular.