Três dígitos. A maior parte das pessoas morre sem chegar a necessitar de três dígitos para escrever a idade. Dois dígitos costumam bastar. Mas Kissinger não era um homem banal, Kissinger definiu uma época. Sucumbiu com 100 anos de idade, sem ver o ano do nosso Senhor 2024, que se aproximava a galope.
O legado de Kissinger reveste o planeta inteiro; do Chile a Angola, de Angola ao Vietname, do Vietname à China. Foi nesta última nação que a sua maior jogada se realizou, e triunfou. Preocupado com o entendimento entre Pequim e Moscovo – que representaria uma ligação que meteria em perigo a posição norte-americana – teve a ousadia de abordar a China comunista. Num período de Guerra Fria onde a cruzada contra o comunismo ocupava várias mentes, na América e mais além, viu que as ideologias poderiam ser suplantadas pelos interesses. Os ditos não tinham cor nem cheiro e eram compreendidos por todos os homens, independentemente da língua, raça ou crença.
Oficialmente serviu – como Secretário de Estado – dois presidentes norte-americanos, Richard Nixon e Gerald Ford. Oficiosamente a sua influência estendeu-se muito mais além, penetrando convincentemente no nosso século. A posição mais importante que ocupou, a de Secretário de Estado, é por vezes confusa para quem não segue a política norte-americana. Corresponde àquilo que nós, e a maior parte dos Estados, chamamos de ministro dos negócios estrangeiros. A sua marca além das fronteiras norte-americanas é indelével. Porém, convém abrandar um pouco e perceber que Kissinger se encontrava dentro de uma estrutura hierárquica e burocrática complexa. Culpá-lo ou louvá-lo por tudo aquilo que a América fez é exagerado. Tal exagero foi cultivado pelo próprio Kissinger e pelos seus fãs, que teceram um mito lisonjeador à sua volta.
Parece-nos que Nixon foi tão determinante como Kissinger. O ex-presidente é hoje normalmente associado ao escândalo do Watergate e não recebe o reconhecimento que deveria na mudança da política estrangeira norte-americana.
Kissinger foi um homem que nos permitiu ver que ser bom numa coisa não quer necessariamente dizer que se é bom noutra. Próximo de Rockefeller, foi seu conselheiro sistematicamente, um fracasso desdobrado em três falhanços – Rockefeller nunca conseguiu ser o candidato escolhido para disputar a presidência, quanto mais ganhá-la. Kissinger conhecia a política internacional bem melhor do que a política dos Estados Unidos.
Henry Kissinger, nascido Heinz Kissinger, tinha uma vantagem com os estrangeiros que outros americanos não teriam. Nasceu na Alemanha numa família asquenaze, chegou aos Estados Unidos com os seus pais depois de ter evitado in extremis a onda nacional-socialista. Ele nunca perdeu um apego à cultura alemã – poder-se-ia dizer que Kant ocupou uma posição central nos seus estudos – e isso permitiu-lhe guardar sempre uma posição inusual, que o destacava entre os seus concidadãos.
Não tenho qualquer dúvida que a administração norte-americana vê com preocupação a popularidade de Kissinger tanto na China como na Rússia. O seu falecimento foi um evento importante nos dois países. Na China as autoridades disseram adeus a um velho amigo. O embaixador chinês nos EUA escreveu no Twitter (agora aparentemente chamado X) o seguinte: “A história recordará o que o centenário [Kissinger] contribuiu para as relações China-EUA, e ele permanecerá para sempre vivo no coração do povo chinês como um velho amigo valiosíssimo.”
Em 2023, sem deter qualquer posição oficial no governo norte-americano, Kissinger visitou a China e obteve um tête-à-tête com Xi Jinping. Honra que a maioria dos oficiais americanos jamais obterá. Em Washington DC sussurra-se que a reputação de Kissinger lhe permitia fazer uma espécie de diplomacia paralela, o que incomodava grandemente alguns burocratas.
Putin relembrou que teve a oportunidade de falar com Kissinger várias vezes, dizendo que era um “sábio e talentoso estadista.” Mencionou que o seu trabalho permitiu a détente americano-soviética, algo que haveria contribuído de forma decisiva para aumentar a segurança global.
Os detractores de Kissinger fustigaram a sua rota ancorados em dois reparos. O de que Kissinger nunca se assimilou verdadeiramente à América e o de que Kissinger abdicava muito facilmente dos princípios em nome da necessidade. Adriano Moreira, entre nós, escrevia uma crítica onde os dois reparos confluíam, no seu O novíssimo príncipe:
“[…] vemos os EUA arriscados a caminhar para o modesto lugar secundário que a mediocridade das chefias lhe prepara, levados em grande parte pela mão de Kissinger, que levou a cólera de alguns à agressão de dizer que muitas vezes menos parece um judeu naturalizado, do que um alemão vencido a vingar-se dos EUA. Todo o mundo livre precisa de que os EUA voltem à inspiração dos seus fundadores, e retomem a segurança que decorre da fé nos princípios.”
Mas Adriano Moreira era um homem bom, sei-o porque chegou a ser meu professor, e como Maquiavel nos alertou faz séculos: os homens bons mais rápido encontram a sua ruína do que a sua preservação, no meio de tantos homens que não são bons.
A genialidade de Kissinger resistiu até ao fim. Num dos seus últimos livros, A Ordem Mundial, lemos isto: “Os Estados Unidos têm todas as razões da história e da geopolítica para fortificar a União Europeia e prevenir que a dita caia num vácuo geopolítico; os Estados Unidos, se separados da Europa na política, na economia, e na defesa, transformar-se-iam geopoliticamente numa ilha para lá das margens da Eurásia […]”
O controlo exercido por Washington no velho continente é o que lhe dá a vantagem competitiva face aos outros mastodontes do planeta. E esse controlo poderá ser decisivo caso a América não consiga separar Pequim e Moscovo, como Nixon e Kissinger conseguiram outrora.