A morte é o evento que nos acompanha desde que somos gente. É o grande mistério da vida que em todas as épocas da história o ser humano tenta perscrutar e decifrar. Aliás, a morte é um processo que começa com a nossa concepção. Morte e vida coabitam o intrincado tecido biológico, físico, mental, psicológico e espiritual que constitui a identidade de cada pessoa.
O mês de Novembro é, no contexto religioso, mas também culturalmente, dedicado à memória daqueles que nos precederam na história. Seja com a celebração cristã do dia de Todos os Santos, seja com a mesma celebração, mas batizada pelo mundo secular como a festa Halloween tão na moda, iniciamos este mês convidados a olhar para o além. Ou, pelo menos, para os que já não estão no aquém. O segundo dia do mês é dedicado a Todos os Fiéis Defuntos, celebração que a liturgia cristã mantém desde o início do séc. XI.
Como sabemos, Halloween é uma contração da expressão All Hallows’ Eve. Interessante. O mundo, compreensivelmente, tem aversão a pensar na morte. O desconhecido sempre provocou medo e a morte é o salto para esse grande desconhecido acerca do qual a ciência, desoladamente, nada consegue balbuciar. Por isso, tentamos fintar a presença desta constante companheira de viagem, que a cada momento, mais ou menos inesperado da vida, nos vai espreitando, a nós e aos que nos rodeiam. O Halloween é só uma maneira de lidar com essa dimensão. Mas basta ligar qualquer canal de televisão ou de séries para vermos a presença dos dead men walking e afiliados. Anjos e demónios, bruxas, espíritos, almas que vêm do outro mundo ou comunicam connosco, constituem uma panóplia de cosmética da morte que povoa o nosso imaginário.
Cada sociedade tem os seus tabus. E tabus são necessários para vivermos, convivermos e nos organizarmos em sociedade. Mas é bom que tomemos consciência de que o tabu é tabu. E a morte, juntamente com a solidão (que é a expressão vivente da morte), é o grande tabu da nossa sociedade. Ainda me lembro como, quando morreu a minha avó – estava eu na escola primária, por isso já lá vão umas dúzias de anos –, tanta gente se preocupava por eu ir ao seu enterro. Até o diretor da escola simpaticamente se ofereceu para ficar comigo enquanto a minha família estaria na celebração. Escondemos a morte das crianças. Mas depois temos que lhes dar uma noite halloween. Como ainda não havia halloween nem séries sobre mortos-vivos, graças a Deus pude ir ao enterro da minha avó de que me lembro com saudade e não com pavor ou trauma de infância.
Mas, será só por ser o confronto com o desconhecido que a morte nos mete medo? Para quem não tem fé, a vida acaba no momento da morte. É o ponto final, o fim. Medo de quê, propriamente, se não há absolutamente nada? Talvez apavore precisamente isso: o absoluto nada, o vazio total. A morte, para quem tem fé e para quem a não tem, levanta a grande questão do sentido da vida. A humanidade não se divide entre quem crê e quem não crê, mas entre quem busca e quem desistiu ou vive instalado. Claro que é mais fácil viver centrado no comezinho do quotidiano, divergindo-se do essencial – ou viver divertido, como diria Pascal dos que se alienam da verdadeira questão da existência humana – do que confrontar-se com o sentido último da vida. Procurar o sentido da existência, que se colhe em cada decisão e em cada opção de vida, é trabalho de todos, crentes e não crentes.
Quem tem fé, nomeadamente quem crê em Cristo, sabe que a vida não acaba; apenas se transforma. Então porque encontramos cristãos com medo da morte? Que imagem de Deus tem quem acredita nele e lhe tem medo? Não certamente a imagem de Deus que Jesus Cristo, a preço tão alto, nos deixou. A presunção da salvação por mérito é isso mesmo: presunção. O Céu é, por definição, graça, gratuito, free of charge. E, se é graça divina, ninguém o merece. Quem de nós pode dizer que merece o Céu? Mas Cristo morreu e ressuscitou por nós. O Céu já nos foi dado. Afirmar o contrário é negar o poder salvador de Jesus Cristo. Negação obviamente compreensível da parte de quem não tem fé, mas ponto absolutamente crucial para o cristão.
Outra história completamente diferente é se eu, no auge da minha pseudo-liberdade, não aceito o que me é dado de graça. Se alguém me quer oferecer um presente e eu não o aceito, não há presente, não há oferta. Se o inferno existe, é isso: a prepotência humana levada ao extremo da autossuficiência que nega a necessidade do outro, que rejeita a gratuidade do amor. O resultado é o egoísmo total, a solidão absoluta – o inferno. E, neste sentido, remeter exclusivamente o Céu ou o inferno para depois da morte é tentação. Cada decisão egoísta que tomamos é já experiência de inferno. E, ao contrário, cada experiência de entrega, de serviço e de amor que fazemos é já antecipar algo de Céu. Claro que, absolutamente, estas experiências se vivem só onde encontra absoluto: na eternidade.
Por isso, o cumprir da Lei de Deus, o amor ao próximo, a vida moralmente correta e boa não é o modo de ganhar o Céu. Ao contrário! É a forma de aceitar e agradecer o Céu que já nos foi dado. Outra vez, o Céu não é um prémio de bom comportamento. Essa é a atitude criticada por Jesus nos fariseus que, por cumprirem as regras, se sentem com direito à salvação. É pura Graça. Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, não é o meio para alcançar o Céu. É o modus vivendi próprio de quem já foi alcançado pelo amor de Deus.
Nas referências escatológicas catequéticas e teológicas, bem como nas grandes representações pictóricas (veja-se a Capela Sistina de Michelangelo) ou na literatura universal (por exemplo a Divina Comédia de Dante Alighieri), encontramos sempre a menção aos três possíveis estados: Céu, inferno e purgatório. Se o inferno é o egoísmo absoluto, a solidão eterna, o Céu é a comunhão plena, o amor total, a alegria, a felicidade eterna. Claro que estamos a tentar titubear o que pouco ou nada sabemos. Mas temos uma certeza: a nossa imaginação ficará sempre aquém da realidade: “está escrito: o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram, o coração do homem não pressentiu, isso Deus preparou para aqueles que o amam” (1Cor 2, 9).
O purgatório é frequentemente representado como um “estado intermédio” entre Céu e inferno. Quer dizer, um estado sofredor, mas que garante a entrada na alegria e comunhão eterna com Deus. Almas que ardem no fogo e que são libertadas desse tormento pelos anjos de Deus que as elevam aos Céus. Ou as que pedem as nossas orações, como testemunham tantos monumentos às “Alminhas” espalhados pelas estradas do nosso país, como marca de uma profunda religiosidade popular.
Mas, de facto, purgatório não é substantivo; é adjetivo. É o encontro de amor com Deus que é purgatório. A entrada na comunhão plena com Deus purga-nos. Se formos minimamente honestos, todos reconhecemos que há sempre algo na nossa vida a purificar. Todos nós sabemos o bem que queremos mas tantas vezes fazemos o mal que não queremos (Rm 7,19). Até no bem que fazemos, tantas vezes (sempre?) as intenções não são totalmente puras. Por isso, a imagem do fogo é sugestiva. Simboliza fortemente o ardor de coração que se purifica pelo amor de Deus, tal como o ouro se liberta das impurezas através do fogo. Não por acaso o nosso poeta diz que o amor é fogo que arde sem se ver. O purgatório não é uma questão de tempo (eternidade não é tempo sem fim, mas ausência de tempo), mas de intensidade do encontro com o Amor em Pessoa.
Para quem tem fé, a morte não pode amedrontar. Teria Jesus Cristo morrido e ressuscitado em vão? Se tememos a morte, quão longe estamos da “querida irmã Morte” de S. Francisco de Assis ou do “morro porque não morro” de Sta. Teresa de Ávila!
Mas não, estas expressões não são apologia da morte. Porque não há duas vidas, uma antes e outra depois da morte. A pessoa é a mesma, a sua vida é que se transforma em plenitude de alegria e amor – no fundo o que todos desejamos no nosso íntimo. Por isso, quem não tem medo da morte, geralmente é porque ama profundamente a vida.