É verdade que o Papa emérito, quando renunciou ao pontificado romano, remeteu-se voluntariamente a uma vida de silêncio e oração. Desde então, tem honrado esse seu propósito e, por isso, são escassas as suas intervenções públicas. Contudo, quando acontecem, mais por excepção do que por regra, não faltam vozes a condenar Bento XVI pelo que julgam ser, se não uma falta de delicadeza para com o Papa Francisco, pelo menos uma violação do silêncio e oração a que se comprometeu.

É verdade que Bento XVI manifestou publicamente a intenção de se entregar a uma vida de recolhimento, nesta que é a última etapa da sua existência terrena. No entanto, com a mesma autoridade com que formulou esse seu propósito, que mais não é do que isso mesmo, pode fazer o contrário e intervir na vida pública da Igreja, sempre que o entender necessário ou conveniente. Joseph Ratzinger não fez nenhuma promessa, ou voto, de silêncio, em virtude do qual esteja jurídica ou moralmente obrigado a não se expressar em público. Também não ingressou em nenhuma ordem religiosa que imponha uma tal disciplina. Nenhum tribunal, civil ou eclesiástico, cerceou a sua plena liberdade de pensamento e de expressão, nem o Papa Francisco, a quem deve obediência, como qualquer fiel católico, lhe impôs uma tão gravosa obrigação.

Dito isto, esclareça-se também que, como já escrevi na Voz da Verdade, jornal oficial do Patriarcado de Lisboa, “na verdade só há um Papa, que é Francisco, pois Joseph Ratzinger, ainda que conserve o título pontifício, na qualidade de emérito, não é, nem de facto nem de iure, Papa”. Ter sido Papa não é ser ainda um pouco Papa: o único Papa é Francisco e não há mais nenhum. Em Espanha, mutatis mutandis, também não há dois reis: embora Juan Carlos I mantenha o tratamento real, o único soberano é Filipe VI. Ou se é soberano, ou se é súbdito: Juan Carlos I é súbdito do seu filho, como Bento XVI está submetido à jurisdição do Papa Francisco. Ponto final parágrafo.

Se é verdade que Joseph Ratzinger, para todos os efeitos, já não é Papa, nem Bispo de Roma, continua a ser bispo e sê-lo-á enquanto for vivo, mesmo que já esteja retirado de qualquer cargo eclesial. Com efeito, a condição episcopal, como a presbiteral ou a diaconal, não cessam nunca, mesmo que a pessoa que recebeu a correspondente ordenação, já não esteja em condições de exercer nenhuma função eclesial.

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Ora, qualquer bispo, para além da missão canónica específica que lhe seja determinada pelo Papa – à frente de uma diocese, num organismo da cúria, como núncio, etc. – tem também a missão genérica de coadjuvar o Vigário de Cristo no governo da Igreja universal: “Cada bispo, individualmente, é o princípio e o fundamento da unidade na sua respectiva Igreja particular. […] Mas, como membro do colégio episcopal, cada qual participa na solicitude por todas as Igrejas” (Catecismo da Igreja Católica, nº 886). Neste sentido, cada bispo, para além da função concreta que desempenha por nomeação pontifícia, também está chamado a assessorar o governo da Igreja universal, em união com o Papa e sob a sua autoridade, ou seja, com Pedro e sob Pedro. Assim sendo, Joseph Ratzinger, embora demissionário da diocese de Roma, continua a ser bispo e, como tal, não só pode como deve participar no governo da Igreja universal, em união com o Papa e os restantes bispos católicos. Também por este motivo, Bento XVI não só não está impedido de se pronunciar, como deve fazê-lo, sempre que entenda que o exige o bem da Igreja, em comunhão com o Papa Francisco e os restantes membros do colégio episcopal.

Por último, a Bento XVI, como aliás a qualquer católico, há que respeitar o direito fundamental à liberdade de pensamento e de expressão, que só lhe poderia ser retirado, ou cerceado, por decisão papal, ou sentença judicial.

Quando o Cardeal Ratzinger ainda não tinha sido eleito sucessor de São João Paulo II, dirigiu a Via Sacra, na sexta-feira santa de 2005. Nesse seu texto, o então Cardeal Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé condenou, em termos particularmente enérgicos, o abuso de menores por membros do clero. Essa sua declaração poderia ter sido entendida, na altura, como uma indevida crítica a São João Paulo II, de quem foi sempre um fidelíssimo colaborador. Depois, já Papa, como é sabido, pôs em prática, com ainda mais vigor e determinação do que o seu predecessor, as medidas necessárias para a irradicação desse horrível flagelo. Como cardeal da cúria romana, tinha legitimidade para o fazer? Talvez, mas como bispo católico que já era, não só tinha esse direito como também esse imperioso dever pois, em caso contrário, teria sido conivente, senão mesmo cúmplice, desses crimes.

Curiosamente, alguns dos que agora são mais papistas do que o papa, o não eram com São João Paulo II e Bento XVI; como alguns dos que então eram mais papistas do que o papa, o não são agora, com o Papa Francisco…  Estranho é também que os que agora se escandalizam com as declarações de Bento XVI, nunca tenham protestado contra as intervenções críticas dos cardeais e bispos que publicamente censuraram o magistério dos dois últimos antecessores do Papa Francisco na cátedra de Pedro. Pelo contrário, tanto Bento XVI como o Cardeal Robert Sarah, sempre fizeram questão de sublinhar a sua adesão, obediência e união a Francisco.

A Igreja não se pode dar ao luxo de não ouvir a voz de Bento XVI, não apenas pela sua muita experiência, mas também pela sua grande sabedoria e profunda espiritualidade. Joseph Ratzinger é, seguramente, o melhor teólogo católico da actualidade e, poder contar com a sua opinião é, certamente, um grande dom de Deus à Igreja. Ninguém mais do que o Papa Francisco lhe pode e deve estar grato, pela certeza da sua devoção, pela segurança e profundidade teológica da sua opinião, pela extrema delicadeza e humildade da sua voluntária obediência ao Papa.

Todos nós, católicos, temos uma imensa dívida de gratidão para com Bento XVI, não apenas pelo seu brilhante magistério petrino, mas também agora, pelas suas orações e sempre tão esclarecedoras intervenções.

Obrigado, Bento XVI, pela lucidez intelectual da sua fé e pela coragem do seu testemunho! Obrigado, Bento XVI, por não ceder ante os que o querem silenciar, dando assim um heroico exemplo de liberdade de espírito e de expressão! Obrigado, Bento XVI, pela sua fidelidade à voz da consciência!  Obrigado, Bento XVI, pela sua fidelidade à Igreja, aos seus dogmas, ao seu magistério, à sua tradição e liturgia! Obrigado, Bento XVI, pela sua união e obediência ao Papa Francisco!