Há duas ameaças à democracia de sinal oposto. Uma é, nas suas várias versões, o aumento do populismo. Uma forma de exercício do poder que considera que entre o decisor político e os cidadãos não necessita haver mediação, nem política através de partidos, nem social através de interesses organizados,  mas sim uma relação direta, muitas vezes de base emotiva. A outra é a do reforço de uma oligarquia partidária, em que os poderes dos partidos existentes são cada vez maiores, fechados sobre si mesmos e imunes a qualquer participação e iniciativa dos cidadãos. Na realidade todos os regimes democráticos regulam, através de variados mecanismos (regras do sistema eleitoral, do referendo, das iniciativas legislativas dos cidadãos (ILC), etc.) as possibilidades de participação dos cidadãos  na vida democrática do respetivo país.

Portugal é, no contexto europeu, dos países mais fechados à participação política dos cidadãos. Desde logo no sistema eleitoral é dos raros países onde os cidadãos não podem ter um voto personalizado em candidatos. Os partidos políticos não parecem confiar muito nos cidadãos para participar na escolha de candidatos, e os cidadãos pouco confiam nos partidos políticos. É isso que nos diz os dados do Eurobarómetro de 2018 que indica que apenas 17% dos portugueses tendem a confiar nos partidos políticos e apenas 37% a confiar no parlamento. A leitura optimista destes números é que estamos muito melhor do que no auge da crise em 2013 em que os valores eram dramaticamente ainda mais baixos. A leitura do copo meio vazio é compararmos com os níveis de confiança de países escandinavos, que registam índices bem mais elevados. É com esses de facto que nos devemos comparar, sem dramatismos, mas com realismo e ambição.

Hoje os cidadãos podem apresentar projetos de lei na Assembleia da República se recolherem mais de 20.000 assinaturas. Ainda no passado dia 22 de Fevereiro, foi aprovada uma ILC, para permitir a existência de farmácias hospitalares, mesmo que concessionadas a privados. A história das  ILC, permitidas desde 2003, mostra várias coisas. Foram aprovadas na generalidade 5 das 7 iniciativas apresentadas o que mostra alguma relutância de os partidos irem contra e aceitarem, pelo menos através da abstenção, viabilizar a larga maioria das propostas. O facto de terem sido relativamente poucas em quinze anos, tem a ver com o muito elevado número de assinaturas exigidas (de 2003 a 2016 eram necessárias 35.000 assinaturas). Mas tem também a ver com outra questão. A actual Lei que regula as ILC limita injustificadamente, do ponto de vista Constitucional, iniciativas que tenham por objeto matérias de reserva absoluta da Assembleia da República (artº 164º), com uma excepção (Bases da educação).

Hoje, são vedadas aos cidadãos iniciativas legislativas que possam pretender ter nomeadamente, mas não só, incidindo sobre a reforma do sistema eleitoral. Existir reserva absoluta apenas significa que é exclusivo da Assembleia da República legislar sobre certos temas. Nada implica sobre o direito de iniciativa. Há, aliás, uma matéria de reserva absoluta – eleições dos deputados às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas (alínea j) do artº164) — cujo direito de iniciativa é das assembleias legislativas regionais e não pode pertencer aos cidadãos. E há já na atual lei, como referi, uma única excepção em que é permitida uma ILC em matéria de reserva absoluta da AR: a Lei de Bases da Educação.

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Na sua diversidade estes dois casos demonstram que reserva absoluta não implica iniciativa legislativa. A restrição significativa do âmbito das iniciativas legislativas dos cidadãos em várias áreas é assim uma decisão política, uma escolha errada, pois não só não está alinhada com o pensamento constitucional (vidé os escritos dos nossos maiores constitucionalistas) como tem o efeito de fechar algo que deveria ser aberto: as iniciativas dos cidadãos.

Neste sentido e na esteira dos avanços já realizados nesta legislatura (redução de número mínimo de assinaturas e criação de plataforma eletrónica no portal da assembleia da república), apresentei projeto de lei para alargar o âmbito das possibilidades de participação cidadã. Sem cair em populismos, a democracia representativa fortalece-se com maior participação cidadã. Afinal, quem tem medo dos cidadãos?

PS. Fui desde o início contra a chamada “Comissão Independente para a Descentralização” (CID) e votei justificadamente contra a sua criação por várias razões. O objeto da comissão, não é apenas técnico, mas politico-ideológico, e deveria ser tratado pelos partidos políticos. A remuneração dos seus futuros membros, equiparados a diretor-geral pareceu-me levar a uma “excessiva (e injustificada) oneração do orçamento da Assembleia da República com tais remunerações.” Ainda por ser ambíguo quer o papel desempenhado pelas instituições do ensino superior e a articulação com o processo de descnetralização. Ficámos agora a saber que o Conselho de Administração da Assembleia da República (pelo apoio de PS e PSD) cedeu a verbas exigidas pela Comissão que superam o meio milhão de euros e sobretudo superam em muito o orçamentado para estudos pela AR. Digamos que recomeça muito mal o debate sobre regionalização. Se é para “rent-seeking” (procura de rendas), não obrigado!