1. Numa visão muitíssimo limitada de democracia, esta resume-se à regra da maioria, em que aqueles que têm a legitimidade democrática para legislar e governar, conseguidas através do voto, legislam e governam em nome do povo. Uma democracia liberal é muito mais do que isto. Entre outras coisas, pressupõe uma Constituição que estabelece direitos fundamentais que nenhuma maioria poderá sonegar e uma separação de poderes (legislativo, executivo e judicial) para limitar o poder de cada órgão de soberania. Outra forma de o limitar é a natureza federal dos Estados, com diferentes níveis de decisão democrática, que também existem, mas de forma mais ténue, nos estados unitários com autarquias democráticas. Finalmente, a independência de uma imprensa livre é essencial. Aquilo que sabemos há 230 anos, é que o poder político não deve estar concentrado numa única entidade, mas repartido por diversas entidades  e instâncias. Aquilo que só em meados do séc. XX se percebeu é que o poder político, mesmo num quadro de separação de poderes, sucumbe frequentemente às tentações de gerir a economia e a sociedade, não de acordo com qualquer abordagem ideológica do que constitui o interesse público de longo prazo, mas sim de acordo com interesses miópicos e eleitoralistas de curto prazo de quem detém o poder. Isto só é possível se houver pouca informação, pouca transparência e fraca accountability.  Foi para responder a estes problemas que se reforçou a independência dos bancos centrais, se criaram entidades reguladoras independentes e, mais recentemente, entidades independentes de monitorização das contas públicas (e.g. conselho de finanças publicas).

Os partidos de esquerda, incluindo a ala esquerda do PS, acha este reforço ou criação de entidades relativamente  independentes como um enfraquecimento injustificável do poder político (só este “verdadeiramente” democrático). Uns, mais radicais, consideram que nem deviam existir, que a independência não existe e que estas ideias são tudo fruto de um pensamento “neoliberal”. Outros, mais sofisticados, defendem que a independência dos reguladores coloca-se apenas em relação aos regulados (empresas) e não em relação ao poder político. Estão equivocados. As entidades reguladoras foram criadas em torno dos anos 30 do século passado nos EUA, para melhor servir o interesse público (maior e mais justa concorrência, transparência, tarifários justos e eficientes, etc.) e evitar a discricionariedade e volatilidade da decisão política. Esta muitas vezes não promove  nem a eficiência nem a justiça sobretudo em mercados com poucas empresas (oligopolistas). Só mais tarde (anos 60 e 70), a obra de alguns economistas da regulação (em particular o Nobel da economia de 1982, George Stigler), alertaram para que a regulação em vez de servir o interesse público, poderia estar a servir o interesse das empresas reguladas, naquilo que ficou conhecido como a teoria da “captura” das entidades reguladoras. Há assim uma dupla dimensão desejável da palavra “independência” nas entidades reguladoras, do poder político e das empresas reguladas.

2. A história da regulação e dos reguladores em Portugal ainda está por fazer, mas o modelo que tem vigorado é o da nomeação política dos reguladores, na alternância dentro do bloco central (PS, PSD), alargado por vezes ao CDS no caso dos vogais. Daqui resultaram várias situações. Quando a escolha foi avisada e inspirada, foram nomeados profissionais competentes, isentos e independentes, na dupla acepção da palavra. Conheço e tenho estima e admiração por alguns, independentemente de quem os nomeou. Quando a escolha foi politicamente interesseira e menos má, temos reguladores bons tecnicamente e em termos de gestão, mas politicamente vulneráveis. Quando a opção foi mesmo má, escolheram-se reguladores impreparados tecnicamente e muito permeáveis aos interesses imediatos do poder político. A questão que vale a pena discutir é se as nomeações e regras atuais, explícitas e implícitas, são adequadas, e se não são, que alteração de regras seria necessária.

Antes do mais considero que existem entidades e reguladores a mais. Não precisamos de tantas entidades. Adicionalmente, o modelo que defendo para contribuir para a qualidade da regulação é, num primeiro momento, a existência de concurso público para a escolha da personalidade que será o(a) regulador(a). Depois este escolhe a sua equipa, os seus vogais, e estes deverão inicialmente ser validados (ou não) pela CRESAP. Posteriormente, os candidatos a reguladores são escrutinados na Assembleia da República que emite parecer. Só no final serão nomeados. Para além dos reguladores a independência e eficácia das entidades reguladoras reside também num adequado modelo de financiamento, de gestão financeira e de recursos humanos. Interferências excessivas e injustificadas do Ministério das Finanças, sob a forma de cativações ou de impedimentos ao recrutamento, são também um óbice a essa independência, que a par da competência e da responsabilidade são os ingredientes principais dos reguladores.

PS. Numa extensa declaração de voto sobre cativações nas entidades reguladoras (a disponibilizar aqui) desenvolvo os motivos porque sou contra essas cativações e limitações à gestão de recursos humanos.

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