A partir de certo momento na infância, e em toda a adolescência, éramos seis irmãos à mesa. Não havia mimos para ninguém, muito menos fora das horas das refeições, e portanto nunca ninguém sofreu de falta de apetite. Pelo contrário: o que havia era alguma atenção, não fosse algum dos mais velhos apropriar-se indevidamente de mais do que a sua ração.

Com a estadia de um primo angolano largado pelos pais durante quatro dias em nossa casa, fiquei a saber coisas portentosas: o primo em questão, para comer, precisava que lhe contassem histórias, porque sofria de fastio; e com esse meritório propósito existia em Luanda uma empregada que, abençoada, tinha um jeito especial para ultrapassar a dificuldade, narrando ao menino coisas de espantar.

O primo, na primeira refeição, não comeu nada; e, esboçando um princípio de choraminguice porque queria um bifinho, recebeu, no silêncio geral, um olhar severo do meu Pai, que o transiu.

A cozinheira, a quem se dirigiu fora de horas, informou-o de que não se comia a não ser à mesa ou ao lanche; e que este consistia numa fatia de sêmea e um copo de leite.

Na segunda refeição talvez tenha debicado alguma coisa; e ao terceiro dia era um de nós.

Esta experiência, que me revelou aos seis anos que havia estranhos mundos muito diferentes do meu, foi complementada algum tempo depois com outra ainda mais exótica: havia mães que, doentes de ansiedade pelo pouco que os meninos estavam dispostos a comer, e esgotados os artifícios – só havia sobremesa se comesse a sopinha, eram só duas colheres, se não comesse não crescia, etc. etc. –  lembravam que havia no mundo muitos meninos pretos, coitadinhos, a morrer de fome. O argumento perturbou-me porque não percebia por que forma é que o que ficava nas travessas haveria de chegar aos pretinhos – o meu primeiro livro era justamente sobre um menino que ia numa atribulada viagem de barco para África, e durava semanas.

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O tempo explicou-me as coisas e acabei por perceber que acabar com a fome não depende de haver menos obesos, nem menos desperdício, mas da liberdade de comércio, das boas vias de comunicação e da gestão inteligente dos países. Dito de outro modo: em África, onde há fome sem guerra há governos corruptos e ineptos, quase sempre de esquerda porque foi a esquerda que patrocinou os movimentos de libertação.

Ou seja: a diminuição da abundância, ou da riqueza, de uns, não se traduz automaticamente no consolo de outros. E todavia…

Esta notícia ofende quem ache que os animais não são pessoas; e que é imoral que, no mesmo país em que tanta gente morre por falta de assistência médica tempestiva, se invistam milhões para prolongar a vida de cãezinhos e gatinhos.

Sempre tive cães, livres de entrarem e saírem de casa quando queiram, bem alimentados e tratados e, salvo no que toca a alguma disciplina básica de higiene e convívio, completamente deseducados. Mas nunca fui paizinho senão das minhas duas filhas; a lamechice de tratar os bichos como “filhos”, e a dona da casa como “mamã” dos bichos, suscita nojo; e a maneira correcta de tratar um animal em sofrimento, se a doença for incurável ou requerer dispendiosos e longos tratamentos, é abatê-lo sem sofrimento.

“A clínica abre agora ao público também com consultas de especialidade e meios de diagnóstico analíticos, radiologia convencional, ecografias e modalidades de reabilitação tais como electromioestimulação, magnetoterapia, ultrassons, terapias com laser e hidroterapia, entre outras, dedicadas a animais”.

Nem vou ver quantas câmaras hiperbáricas tem o país, que doenças tratam ao certo tais equipamentos, e de que montantes estamos a falar. E pode bem ser que esta loucura, se sustentada, não se traduzisse em qualquer benefício, tal como a comida desaproveitada não alimenta ninguém.

Mas numa sociedade onde, entre consultas e cirurgias, há mais de 120.000 pessoas em lista de espera há mais de um ano; e onde as redes sociais estão pejadas de animais cuja etologia é ignorada, por ser substituída por antropomorfizações como se vivêssemos num filme de Disney: a notícia pode encher de regozijo os 166.000 votantes no PAN; mas de indignação os restantes.