1 A origem da “Democracia”. O conceito de democracia (sistema onde muitos governam) nasceu na Antiguidade e foi ganhando novas configurações ao longo dos tempos. “Democracia” surge em Atenas e conjuga duas palavras: “demos”, que significaria povo, e “kratia”, que é a palavra grega para poder. Democracia seria então o governo de muitos, o governo de muitos que pensa em todos; seria o governo onde o poder é do povo. Claro que o ideal de liberdade e democracia da Grécia Antiga, com o “povo” ao leme a tomar decisões, pode ser considerado um ideal louvável, mas não é linear, não tem aplicação direta e automática, depende de múltiplos parâmetros, factores, “realidades,” circunstâncias, contextos, muitos deles incontroláveis. A ideia foi ganhando novos contornos ao longo do tempo e, actualmente, as democracias modernas estão alicerçadas nos conceitos de Soberania (soberania do povo), de Representatividade (democracia representativa), nos Direitos individuais, na existência de Eleições livres (voto popular), e no conceito da Separação de poderes. A democracia, contudo, é o governo de “todos” apenas em teoria, pois na prática as pessoas apenas escolhem os seus representantes mediante o voto. O povo não participa diretamente das escolhas do governo; delega essa função a pessoas que teoricamente defendem suas ideias. Na modernidade, dizem-nos os linguistas, a palavra “Democracia” é aquilo que se define como uma palavra de “signo aberto”, ou seja, ela pode significar “qualquer coisa”. É por isso muito difícil, complexo, problemático, definir com exactidão o conceito de Democracia.
2 A degradação da Democracia hoje. Os níveis globais de democracia são, actualmente, os mais baixos desde 1980. A deterioração dos processos democráticos é evidente; a polarização social é gritante; o espírito de cancelamento e a diminuição da liberdade de expressão são crescentes. A decadência dos grandes media (quando a informação passou a ser um negócio a verdade deixou de ser importante), os casos de promiscuidade e interferência na “separação de poderes”, a reduzida participação popular nas eleições, o engano e a manipulação generalizada da população, a crescente instrumentalização da escola, das artes e cultura, dos media com fins político-ideológicos são realidades preocupantes, difíceis de negar. Uma pesquisa do Instituto Sueco “V-Dem”, ligado à Universidade de Gotemburgo, revela-nos que tem havido um crescimento do autoritarismo e das autocracias no mundo. Os principais parâmetros observados: liberdade de imprensa, independência entre poderes, repressão policial e integridade do sistema eleitoral, que caracterizam os países democráticos, caíram em 2022 para os níveis mais baixos dos últimos 40 anos. Em sentido contrário, o número de Estados ditatoriais é, pela primeira vez, nos últimos 30 anos, maior do que o número dos estados democráticos. Em termos populacionais, refere ainda o mesmo estudo, 70% das pessoas no mundo vive sob um regime ditatorial.
Para além do já referido, constatamos que na sociedade contemporânea, o envolvimento das pessoas em associações políticas e civis é cada vez mais pontual; o esvaziamento dos valores e práticas religiosas, outrora factor de forte impacto e coesão social, é dramático; o conhecimento é substituído pela emoção; a protecção dos direitos individuais banaliza-se; a indiferença perante a centralização da administração e perda de vigor e autonomia das associações locais é gritante; o aumento do fosso entre governantes e governados, com o crescente aumento de poder de quem governa não provoca, por ignorância ou indiferença, qualquer motivo de preocupação na população. Até a palavra “democracia ” é cada vez mais utilizada como uma espécie de palavra mágica para silenciar, inibir, intimidar pessoas, ideias, movimentos, orientações e práticas religiosas: “A minha opinião é democrática, a tua é anti-democrática; logo cala-te!”; alguém faz uma crítica à esquerda e de imediato é etiquetado de perigoso radical, de extremista e fascista; alguém expressa (com excepção ao estilo de vida celibatário; esse não faz mal) uma opinião negativa em relação ao estilo de vida homossexual; ou a qualquer opção pró aborto, pró eutanásia e é de imediato trucidado, cancelado, acusado de “homotudo” ; uma religião defende determinadas práticas e valores, “desalinhados” com o secularismo e o relativismo dominante e logo a sua capacidade de intervenção é limitada e condicionada ao espaço privado . Note-se: todas estas pessoas, movimentos, políticos dizem tudo isto fazer em nome da democracia.
3 Vários pensadores contemporâneos referem de forma inequívoca que a Democracia não é algo alheia àquilo que foram os totalitarismos do séc. XX (fascismo, comunismo, nazismo). E mais uma vez, também estes, agiram em nome da Democracia. Já o grande escritor George Bernanos dizia: “Democracia não é o contrário de ditadura; ela é a causa da ditadura”. Também Churchil nos diz que “a Democracia é o pior sistema possível, com excepção de todos os outros”. Ou seja, Churchill faz o elogio da democracia; resta-nos, contudo, saber se as atuais democracias podem ainda ser consideradas verdadeiras democracias. Por outro lado, grandes analistas de “linguagens totalitárias” que estudaram, por exemplo, a linguagem do Terceiro Reich, alertam-nos que “estamos com uma linguagem 102% pronta para o maior genocídio do mundo”. De acordo com tais analistas, “nós temos actualmente um vocabulário político, um vocabulário público, temos um vocabulário “pronto” que tem a estrutura perfeita para um novo genocídio”. Invariavelmente, usando e invocando a palavra democracia; tudo isto em nome e em prol da democracia. Tal como no passado (esperemos que sejam apenas hipérboles linguísticas). Será que os requisitos de soberania e participação popular, de liberdade de imprensa, de separação de poderes e liberdades individuais (sem os quais não pode haver democracia, ainda que invocados, proclamados e legislados) estão ainda presentes nos ambientes sócio-políticos da nossa vida colectiva? Não havia também participação popular no Terceiro Reich? E as marchas a favor de Hitler? Não existia o voto? Hitler foi eleito democraticamente. Considerava-se um democrata, a favor da revolução democrática na Alemanha, na Áustria, etc. O próprio Karl Marx tinha um jornal cujo subtítulo era “Lutando pela democracia”; ou seja, dizia que era um democrata, que lutava pela democracia. Parece, então, ser um erro considerar-se que a democracia é, por definição, uma oposição às ditaduras. A representatividade, o voto popular, e existência do parlamento, a separação de poderes, as alegadas liberdades individuais não garantem, só por si, a existência de uma verdadeira democracia. Parece que Bernanos tinha razão.
4 Os perigos que ameaçam a Democracia são vários; mas um dos sinais que nos deve colocar alerta é quando ouvimos o poder político dizer, repetidamente, que “as instituições estão a funcionar”. Porquê? O maior perigo de uma democracia é precisamente achar que não há perigo. Achar que o colapso, a decadência não são assim tão graves. Achar que temos que nos adaptar, que a democracia tem sempre capacidade para se regenerar. Considerar, por outro lado, que “tudo” é fake news, que “tudo” é teoria da conspiração. Tal significa dizer que é preciso, então, estar alerta com as chamadas “armadilhas da confiança”. Como nos lembra o professor David Runciman da Universidade de Cambridge, se a democracia quiser sobreviver, deve descobrir maneiras de anular, “desmontar” e enfraquecer estas “armadilhas da confiança”. Será então que a democracia é um grande ideal que com o passar do tempo se foi pervertendo, corroendo por dentro? Ou é uma perversão que se vendeu como um grande ideal? Será que as ideias democráticas, não são afinal tão democráticas quanto dizem ser, corrompendo as pessoas, ou são as pessoas que corrompem os ideais que, de facto, são intrinsecamente democráticos?
Alexis de Tocqueville, grande pensador político, historiador e escritor francês reflectiu profundamente sobre a democracia nos EUA. Alerta-nos este autor para os riscos de uma democracia não enraizada na liberdade individual e na igualdade política poder evoluir para uma “ditadura da maioria” (o triunfo de uma espécie de “hiperdemocracia”). Ela é especialmente enganadora, pois ainda que possa não se traduzir em violência física, ela é imperceptivelmente invasiva, levando as pessoas a aderir ao pensamento dominante contra, porventura, as suas convicções mais profundas. Ela é especialmente insidiosa, pois potencia a formação de uma sociedade ignorante, imatura, infantilizada, sem capacidade para definir o seu próprio caminho. Este tipo de maioria abarca todos os aspectos da vida social, formatando a linguagem, apresentando opiniões prontas e acabadas, oprimindo e despersonalizando quem pensa diferente.
5 A Democracia enfrenta dificuldades e desafios muito sérios. Mas o principal desafio, a grande e complexa questão de fundo está dentro de si mesma; é da sua própria natureza. Ou seja, a Democracia nunca conseguirá gerar, por ela própria, os princípios e valores nos quais se baseia. Este é o grande e, aparentemente, insolúvel e paradoxal problema da democracia. O Papa Pio XII, já no final da guerra, fez reflexões muito importantes acerca da Democracia. Pela primeira vez, considera-se a dignidade da pessoa humana como o fundamento básico da democracia, alertando-nos que as massas anónimas, a massificação, a cultura de massas é o “inimigo capital da verdadeira democracia”. Olhando a História, as alternativas como a Monarquia, a Ditadura, a Vanguarda Revolucionária foram modelos de governo que os povos conheceram e, ainda que se possam identificar aspectos positivos (nuns mais do que noutros), são soluções globalmente menos boas que a política partidária, gerada pela democracia. Contudo, a tendência geral das democracias modernas é reduzir o seu exercício a um mero processo de apuramento da vontade popular, estabelecendo uma relação directa entre o bem comum e a vontade da maioria. Este é um enorme erro. Diz-nos, sobre esta matéria, o saudoso e brilhante padre João Seabra que “a democracia para funcionar precisa de se basear em princípios que ela não é capaz de gerar pelos seus próprios processos democráticos”. Ou seja, continua João Seabra, “a democracia só funciona se houver um princípio sobre a dignidade humana que escape ao jogo da democracia”. Quando a democracia ignora este princípio estruturador arrisca-se a cair nas mãos das massas que, como nos alertava Pio XII, é o pior inimigo da verdadeira democracia. A vida democrática exige, então, que haja consensos anteriores à expressão da vontade comum, os quais não podem estar sujeitos à opinião da maioria. (se a maioria resolve votar em expulsar do país todas as pessoas que não nasceram em Portugal; ou se a maioria decide “eutanasiar” todas as pessoas com mais de 70 anos). Não é possível sujeitar todas as coisas à votação democrática e, como no diz o padre João Seabra, “se em nome da democracia, não aceitamos isto, elevando o processo de decisão maioritária a único valor absoluto, então estamos a pôr em perigo a verdadeira convivência democrática”. É o sacrifício da minoria pela maioria, da qualidade pela quantidade. Apenas a indiferença e ignorância das massas pode justificar a crença de que são elas que governam. Também Ortega y Gasset, grande filósofo espanhol do séc XX, reflecte sobre o seu “homem-massa”, o qual considera com facilidade que o novo é bom só porque é novo e o velho é mau só porque é velho. Ele é o típico (e patético) “homem do seu tempo”, que ignora o passado e a herança das gerações que o precederam. Esta maneira alienada de estar na vida faz do “homem-massa” um homem “feito à pressa”, sem valores simbólicos, morais ou espirituais, sempre em busca das garantias materiais asseguradas pelo Estado. Este comportamento de massa, principal inimigo da verdadeira democracia (Pio XII), faz com que as pessoas percam o ser caráter único e irrepetível, sendo então capazes, como o demonstra a História, de cometer as piores atrocidades.
6 Também o escritor e brilhante pensador Manuel De Prada refecte sobre o tema assumindo posições muito interessantes. De acordo com o mesmo, há um entendimento muito redutor, simplista, incompleto acerca do conceito de “Democracia”. Claro que a democracia, enquanto “Forma de Governo” é, de acordo com o mesmo autor, muito positiva e desejável, pois ela faz uma justa repartição do poder, as pessoas sentem-se politicamente representadas e a sua liberdade individual é respeitada. O problema é que, actualmente, a Democracia deixou de ser uma Forma de governo e passou a ser, de acordo com o mesmo autor, um Fundamento de governo, ao ponto de a podermos considerar como uma verdadeira religião; “religião de estado”. De acordo com esta práxis estatal, aquilo que for maioritariamente decidido está legitimado, está decidido, está bem. não necessita de qualquer tipo de discernimento de ordem ética ou moral. Isto conduz, a prazo, a um claro processo de auto destruição das sociedades, das comunidades, das famílias, das pessoas. As nações são confrontadas com questões estruturantes, civilizacionais, sagradas, vitais, as quais devem sobrepor-se ao mero e circunstancial jogo democrático, obrigando, para isso, a amplos e sólidos consensos. Por outro lado, a Liberdade e a Democracia como Forma de Governo está há muito, ainda segundo o mesmo autor, desaparecida dos nossos governos europeus. Já a Democracia como Fundamento de governo está bem presente, lisonjeia as massas de forma hábil, é terrível, nefasta, provoca-lhes impulsos emocionais para inibir a sua reflexão, cria falsas narrativas e falsos consensos ao ponto da verdade ser “substituída” por um alegado “consenso universal”. As massas são o inimigo da verdadeira democracia (Pio XII).