Depois do apontado na primeira parte deste meu ensaio histórico-teológico, que posso eu dizer agora sobre o que envolve a FS?
Em primeiro lugar, que tudo me parece muito claro. Tão claro que até me sinto um pouco acabrunhado ao dizer o que vou referir. Sim: o texto da FS pode andar, aqui e ali, por zonas de menor contraste entre o “preto” e o “branco”, mas se o faz é para chegar a todas as pessoas humanas – que nunca estão num de tais extremos – e garantir-lhes que Jesus também deseja fazer o mesmo num convite omni-perdoante rosto-a-rosto à conversão prática e concreta. E chegar até elas, envolvendo-as em espiritualidades e morais abertas. Quer dizer: um pouco à semelhança do afirmado pelo Professor Catedrático Jorge Teixeira da Cunha: «no sentido da sua adjacência maior ao mistério de Cristo, como redenção de todos os seres humanos, seja qual for a sua condição».
Dito isto (e seguindo o princípio tão valorado pelo Papa Francisco de que “o tempo é mais vasto do que o espaço” pois “o caminho para o desenvolvimento humano é um processo”) gostaria de ressalvar algo. A saber: que possivelmente ainda falta, na análise da FS – texto que ficará associado ao amado Papa Francisco como a “Dominus Jesus” ficou colada ao então Cardeal Joseph Ratzinger –, uma, prudente e prudencial, reflexão mais aprofundada acerca dos pressupostos teológicos (e não só – mas não restritivamente sociológicos –) de um conjunto de seis distinções capitais sobre as quais se alicerçam outras que se tornarão inevitavelmente prementes com o tempo.
Primeiro: entre “casal”, “união” e “pessoas num casal”.
Segundo: entre “situação irregular a nível homossexual ou heterossexual” e “situação irregular de outra natureza”.
Terceiro: entre “bênção litúrgica” com caracter ritual e jurídico e “bênção pastoral” sem esses dois traços.
Quarto: entre “pedir bênção” e “obrigatoriedade de dar bênção” (creio, de facto, que o amor apenas requere o acolhimento consistente, humilde e incondicional de todas as pessoas).
Quinto: entre “acolhimento” e “aprovação”.
Por fim: entre “orientações universais” e “orientações variáveis geograficamente”, com ou sem a mediação das distintas Conferências Episcopais, respetivos Bispos (ou equivalentes) e os presbíteros a estes unidos.
Em suma: face à FS, talvez seja importante que todo aquele tempo cronológico sonhado, numa espécie de profecia auto-realizável por sugestão, pelo nosso estimado Papa Francisco, se faça kairós (“tempo da graça”), também desde os espaços teológicos “em saída” feitos líthoi anoichtoí (“pedras abertas”; cf. Lc. 24,2). Espaços onde, com epistemologias e hermenêuticas da humildade e (citando Francisco) «sem substituir a doutrina pela ideologia», se reflete fraternamente sobre estes assuntos, mas sempre com conhecimento, rigor e amor: a Deus, à Palavra Divina, à Tradição, ao Magistério, à razão, à experiência que se faz do real, ao evoluir da compreensão teológica e, enfim, à verdade na caridade. Assim sendo, estou certo que se avançará com segurança sinodal e «ut unum sint» (Jo. 17,21) também no que ao tema da FS diz respeito.
Disse que se “avançará” e não tenho qualquer dúvida acerca disto, mas conquanto outorgando a mesma atenção que tem sido dada por Francisco ao dito por Vicent de Lerins e John Henry Newman acerca da evolução doutrinal. Vicent de Lerins afirma, no número 23 do seu “Comonitório”, que «o dogma cristão deve crescer e com o passar dos anos se deve consolidar, desenvolvendo no tempo, tornando mais refinado com a idade, mas de tal maneira que siga sempre incorrupto e incontaminado, íntegro e perfeito em todas as suas partes, e, por assim dizer, em todos seus membros e sentidos, sem admitir nenhuma alteração, nenhuma perda de suas propriedades, nenhuma variação no que está definido».
John Henry Newman escreveu, no seu “Ensaio sobre o desenvolvimento da doutrina cristã” [EDDC], que «viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes» [EDDC 1, 1, 1, 7] (…) dado que «não há um aspeto suficientemente profundo para esgotar o conteúdo de uma ideia real, não há um termo ou uma proposição que sirva para a definir» [EDDC 1, 1, 1, 3], conquanto nesse evoluir se sigam segundo sete notas: «Permanência da Forma (…), Continuidade dos Princípios (…), Poder de Assimilação (…), Sequência Lógica (…) Memória (…), Antecipação do Futuro no Passado (…), [e] Vigor Crónico» [EDDC 2, 5, 1-7].
Se estas obras forem de difícil acesso, recomendo vivamente a leitura da obra “El Dogma en Evolución: Cómo se desarrollan las doctrinas de fe” de Michael Seewald (que ocupa presentemente a cátedra de “Teologia Dogmática e História dos Dogmas” na Universidade de Münster – antes ocupada por Joseph Ratzinger), na qual se reflete com enorme idoneidade histórico-dogmática sobre o significado teológico de “evolução”. E fá-lo na linha de Francisco e da ideia por este assumida, desde a dialética e a dialogia fessardiana e guardiniana, duma Igreja que é «complexium oppositorum». Uma em que se celebra o facto, já tão de Francisco, de que a «unidade é mais ampla do que o conflito».