“Quando se elimina o tição, as chamas selvagens substituem as mansas”.
(Stephen J. Pyne, Piroceno, edições Zigurate, pag.84).

A Agência para a Gestão de Integrada de Fogos Rurais (AGIF), tem produzido relatórios anuais em que presta contas.

Vale a pena usar o relatório recentemente divulgado para responder a uma pergunta relativamente simples: estamos a andar no sentido de ganhar controlo sobre o fogo, ou mantemos a tendência das últimas décadas que consiste em deixar que as chamas selvagens substituam as mansas?

Antes de avançar, gostaria de fazer a minha declaração de interesses: conheço e sou amigo, não de casa, mas profissionalmente amigo, de Tiago Oliveira, o presidente da AGIF.

“Das 10 389 ocorrências de incêndios rurais, há 8 600 (83%) com menos de 1 hectare (ha) e apenas 1% têm mais de 100 ha, responsáveis por 85% da área ardida. Com mais de 500 ha, foram registados 29 incêndios (0,28%) que explicam 70% da área ardida e registaram-se 17 incêndios com mais de 1 000 ha (0,16%), um destes tendo queimado mais de 24 000 ha (1/5 da totalidade da área de 2022).”

Comecemos por este ponto que, de forma clara, exemplifica o problema base.

O que nos deve preocupar não é a quantidade de incêndios que começam, mas o pequeníssimo número daqueles que não conseguimos fazer parar, ao ponto de um só incêndio ter sido responsável por um quinto da área ardida.

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O normal é 1% a 2%dos fogos serem responsáveis por mais de 90% da área ardida anual.

Esta é uma das razões pelas quais insistir na produção de informação com base em médias e percentagens de dez anos não faz o menor sentido, visto que é conhecido o padrão da área ardida anual, que tem grandes variações, em grande parte em função da variação meteorológica, e numa pequena parte, em função do tempo decorrido desde o último fogo.

“Portugal investiu 529 milhões de euros (M€) na governança e gestão do risco de incêndio rural …. De realçar a evolução desde 2017 em que a despesa total se cifrava em cerca de 143 M€ com 20% afetos à prevenção e 80% à supressão.”

Esta é a linha base de argumentação que tem sido usado por todos os governos e o mais relevante é o facto de o aumento de despesa relacionada com os fogos ser uma constante há longos anos (aumentos mais expressivos nos anos seguintes a grandes fogos, aumento menos expressivo à medida que a memória de grandes fogos se vai desvanecendo).

Nada contra este tipo de informação, mas só tem interesse quando se sabe exactamente a que correspondem estes valores, na medida em que todos sabemos que quando se atira dinheiro para cima de um problema, uma das duas coisas desaparece, mas raramente é o problema.

Claro que um Plano de Acção que tem 97 projectos previstos torna muito difícil a identificação dos efeitos reais desta alocação de meios, mesmo que, como é o caso do relatório, esteja toda a informação disponível.

A vida fica facilitada quando olhamos sobretudo para os quatro objectivos estratégicos em que se organizam os tais 97 projectos.

O primeiro desses objectivos consiste em “Valorizar os espaços rurais”.

É um objectivo estratégico errado que deveria ser rapidamente substituído pelo que verdadeiramente interessa: “Remunerar adequadamente a gestão dos espaços florestais”.

Parece uma questão de lana caprina, mas não é: o problema base dos fogos, aquele que tem permitido que as chamas mansas sejam substituídas pelas chamas selvagens, é o abandono ou diminuição profunda da gestão dos espaços florestais, permitindo uma acumulação de combustíveis finos que, em quantidade e estrutura, favorecem a progressão do fogo com intensidades que fazem com que, rapidamente, a frente dos incêndios esteja para lá da capacidade de extinção.

Pagar essa remuneração, nas componentes em que o mercado não as remunera, é a questão-chave.

Pois com a abstracção “valorizar os espaços rurais”, o Estado entretem-se a auto-financiar a sua actividade com dinheiro fácil e, consequentemente, acção ineficiente: apoio à multifuncionalidade agroflorestal, diversificação da economia em zonas vulneráveis, disponibilização de informação cartográfica, cadastro simplificado, constituição de áreas integradas de gestão da paisagem e outras coisas que tais, como a revisão do regime sucessório.

Lá pagar aos proprietários a gestão que produz bens difusos de interesse colectivo, isso é que tem sido mais difícil.

Cuidar dos espaços rurais é o segundo objectivo estratégico, e tudo o que foi dito antes é aqui aplicável de novo.

O Estado autofinancia-se (o dinheiro tem sido gasto por entidades públicas) para fazer faixas de gestão de combustível – cuja eficácia tem sido posta em causa pela investigação sobre o assunto e mesmo pela avaliação que foi feita sobre o fogo da serra da Estrela – mosaicos, áreas de pastoreio. O próprio relatório refere, e bem, que há um desequilíbrio entre a execução das faixas e a gestão dos povoamentos, incluindo com fogo controlado (as chamas mansas, na terminologia da citação com que comecei o artigo), que tem sido usado muito menos do que deveria.

A estas destinos de recursos disponíveis razoavelmente ineficientes, sobretudo se comparados com o potencial de pagar aos proprietários a gestão que o mercado não remunera adequadamente, juntam-se projectos de recuperação de áreas ardidas e outras fantasias pouco interessantes (a generalidade das áreas ardidas recuperam bem sem nenhuma intervenção, o que interessa é a gestão posterior, nos dez, quinze, vinte anos subsequentes).

Os outros dois objectivos, a alteração de comportamentos e a gestão adequada do risco são matérias em que eu estou “tão fora de esperar bem”, que francamente não me parece que valha a pena fazer algum comentário.

Que esta prestação de contas é muito bem-vinda e que há um esforço brutal para prestar informação, isso é inquestionável e muito de louvar.

Que o país e a sociedade continuem de volta de matérias laterais que acabam sempre no autofinanciamento do Estado, só me permite concluir por uma resposta à pergunta inicial: continuamos mesmo a tendência de deixar que as chamas selvagens substituam as mansas.