Apesar de o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa afirmar que “não há nenhum projecto de retirada de qualquer brasão” do jardim da Praça Império, em Belém, Lisboa, já em 2016, a maioria socialista da autarquia lisboeta, com o voto contra da oposição, aprovou um plano de renovação desse jardim, que não previa a recuperação dos brasões florais que lá constavam. Na altura, fizeram-se ouvir alguns protestos, que agora subiram de tom e ganharam a forma de uma petição pública, que já conta com mais de dez mil subscritores, entre os quais um ex-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carmona Rodrigues, e os ex-ministros Bagão Félix e António Barreto.

Não é propósito desta crónica tomar partido a favor ou contra essa petição, porque se trata de uma questão política opinável, que deve ser discutida pelos especialistas e decidida pelo órgão competente. Na minha condição de cidadão, poderia certamente expressar a minha opinião mas, como sacerdote católico, entendo que não me devo pronunciar sobre questões desta natureza, observando uma regra de conduta nunca desmentida e que agora, uma vez mais, reafirmo: embora fiel à doutrina católica e ao magistério eclesial, não sou porta-voz oficial, nem oficioso, da Igreja, nem de nenhuma instituição a que pertenço, mas que não represento, nem com a qual me identifico nas opiniões que expresso a título individual, com total liberdade e responsabilidade pessoal. Pela mesma razão, reservo-me o direito de discordar das opiniões discutíveis e das opções políticas, sociais, artísticas, económicas ou financeiras de outros fiéis católicos, ou de membros dessas instituições.

Relevado o caso menor dos arranjos florais, que adquiriu na imprensa e nas redes sociais uma importância exagerada, interessa considerar, ainda que brevemente, a moda de reinventar a História segundo preconceitos ideológicos, ora negando a tradição, ora querendo impor ao passado, anacronicamente, os critérios do politicamente correcto.

São duas as fontes da revelação divina: a Sagrada Escritura, que a Igreja crê divinamente inspirada, e a Sagrada Tradição, que são os ensinamentos desde sempre vividos pelos cristãos e aceites como divinamente revelados. A identidade da Igreja decorre da fidelidade a estes dois princípios fundacionais, que se conjugam e complementam. Por isso, as comunidades cristãs reformadas, ou protestantes, que, seguindo o princípio luterano da ‘sola Scriptura’, renegaram a Tradição, entraram num processo de acentuada descaracterização religiosa, ou seja de perda da identidade cristã.

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No campo católico, nem sempre foi pacífica a tensão entre a Tradição e a modernidade: algum tradicionalismo mais radical opôs-se, por exemplo, a algumas das reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano II, esquecendo que a Igreja foi sempre dinâmica no seu desenvolvimento doutrinal e pastoral. Com efeito, ao longo dos seus dois mil anos de história, a hierarquia católica procurou gerir a necessidade de permanecer fiel ao legado fundacional, que é irreformável, ao mesmo tempo que se abriu à necessidade de novas formulações doutrinais – por via, em geral, dos concílios ecuménicos – e morais, nomeadamente no campo da bioética e da doutrina social da Igreja, como as condenações, respectivamente, do aborto, da fecundação ‘in vitro’, da eutanásia e do encarniçamento terapêutico, bem como da maçonaria, do fascismo, do nazismo e do comunismo.

O Evangelho expressa, de forma muito sugestiva, como a Igreja deve gerir a tensão entre a fidelidade ao passado e a abertura ao futuro: “todo o doutor da Lei, instruído acerca do Reino do Céu, é semelhante a um pai de família, que tira coisas novas e velhas do seu tesouro” (Mt 13, 52). Nem tudo o que é antigo é mau, como nem tudo o que é novo é bom; e vice-versa.

Alguns tradicionalistas, confundem a Sagrada Tradição com tradições humanas que, como tais, são respeitáveis, mas não irrevogáveis. Alguém disse, com acerto, que a Sagrada Tradição é a fé viva dos mortos, enquanto o tradicionalismo é a fé morta dos vivos. No extremo oposto, não faltam revolucionários que pretendem fazer tábua rasa de dois mil anos de história e tradição do Cristianismo, para inventar uma nova Igreja, que talvez pudesse ser sua, mas já não seria a de Jesus Cristo.

A Igreja católica, que soube permanecer fiel ao seu divino fundador ao longo de dois mil anos da sua história, em que também não faltaram cristãos indignos dessa condição, sempre valorizou a tradição, a sagrada e a histórica, também nas suas diferentes expressões artísticas, mesmo pagãs. Não é por acaso que o panteão romano, encomendado por Agripa, durante o reinado do imperador César Augusto, e reconstruído por Adriano, apesar de ser um monumento pagão a ‘todos os deuses’ – em grego, pan teon –, não foi demolido pelos Papas, mas convertido na basílica de Nossa Senhora dos Mártires, em memória dos muitos cristãos que deram a vida pela fé, opondo-se a que Jesus Cristo aí fosse representado, em pé de igualdade com os ídolos das religiões pagãs.

Um romano pontífice, ao jeito de alguns tradicionalistas radicais e dos actuais iconoclastas da extrema esquerda, poderia ter achado indecoroso que se celebrasse a Eucaristia, ou se reservasse o Santíssimo Sacramento, no espaço em que antes se tinham praticado cultos idolátricos. Também podia parecer inconveniente que, como acontece na Praça de São Pedro, um monólito pagão esteja colocado no centro do mais icónico largo cristão, servindo de pedestal a uma relíquia da Santa Cruz. No entanto, a Igreja católica sempre entendeu que a beleza, como a verdade e o bem, são atributos de Deus e, por isso, não só aprova e aplaude todas as manifestações autênticas de bondade e de verdadeiro saber, como também venera qualquer expressão artística genuína.

Em Agosto de 2015, o grupo terrorista autoproclamado Estado Islâmico destruiu treze monumentos arqueológicos de grande antiguidade e valor. Algumas dessas ruínas tinham sido declaradas, pela UNESCO, património mundial, pelo que a sua bárbara destruição constituiu um atentado contra a cultura e um crime contra a humanidade. Pelo contrário, vários séculos antes, os artistas cristãos que foram os grandes mestres do Renascimento, ressuscitaram um cânone de beleza que se reportava à antiguidade greco-romana, que era essencialmente uma era pagã. É por isso também que, como sinal de abertura e respeito pela tradição histórica, e por todas as culturas e legítimas manifestações artísticas, a suprema autoridade eclesial não teve reparo em recorrer a um gigantesco obelisco egípcio para, no centro da Praça de São Pedro, erguer bem alto a Cruz de Cristo.