Acredito que só existe verdadeira democracia se esta democracia for uma democracia participada e participativa. E que o instrumento referendário é um dos pilares mais fundamentais para uma democracia participativa que se queira realmente funcional e não meramente aparente ou ficcional.
O estudo académico de Carla Amado Gomes sobre os referendos locais diz-nos que “A história do referendo local em Portugal é fundamentalmente uma não história. Criado em 1911, com o advento da primeira Constituição republicana, o referendo local teve acolhimento formal na Constituição de 1933, mas a revisão do Código Administrativo de 1940 logo lhe cerceou quaisquer aspirações de dinamização democrática. A Constituição de 1976, porventura reminiscente da dimensão plebiscitária das consultas populares sob a égide da sua antecessora, baniu-o do seu enunciado inicial, vindo a recuperá-lo em 1982 — porventura como forma de teste da consolidação da cultura democrática, antes da introdução (em 1989) do referendo ao nível nacional”.
Actualmente, a Constituição admite a realização de referendos de três tipos: Nacionais, Regionais e Locais. Referendos nacionais já tivemos três em Portugal: Referendo sobre a Despenalização do Aborto (1998); Referendo sobre a Regionalização (1998) e o Referendo sobre a Despenalização do Aborto (2007). Regionais não encontrei nenhum que tivesse sido realizado na Madeira ou nos Açores. E referendos locais, tanto quanto foi possível apurar já tivemos oito um pouco por todo o país mas apenas um em Lisboa e – mesmo esse – apenas ao nível de uma freguesia, nenhum, portanto, ao nível da câmara municipal: o que é estranho e revela o grau de gravidade da doença subparticipativa em Portugal. De sublinhar que no nosso país, entre juntas de freguesia e câmaras municipais temos um universo potencial de 3.399 autarquias que já poderiam ter realizado referendos locais mas, destas, apenas oito já o fizeram.
Em Lisboa, com efeito, realizou-se apenas um referendo local na freguesia de Benfica em 2017 e, mesmo esse, por iniciativa do executivo de Junta de Freguesia e não por iniciativa popular através de recolha de assinaturas de cidadãos eleitores na freguesia: o que revela – também – outro sintoma no processo já que a forma principal e maioritária de convocação deste instrumento de democracia participativa deveria ser através dos cidadãos e não dos eleitos locais na busca (legítima) de suporte ou legitimidade para um tomada de decisão sobre um processo mais polémico do que o normal.
O quadro legal do Referendo Local, aliás, enferma de várias maleitas que explicam em boa parte a dificuldade da sua convocação e as fracas participações quando se vencem estas dificuldades:
1. Desde logo não se permite que as perguntas a referendar (três no máximo) possam ser precedidas por “considerandos, preâmbulos ou notas explicativas”: Compreende-se a intenção do Legislador ao procurar dar ao texto um teor neutral e não tendencioso, mas se se podem fazer perguntas não tendenciosas também deve ser possível fazer preâmbulos não tendenciosos e que cedam aos eleitores informações factuais, precisas e concisas que os ajudem a tomar uma decisão mais consciente e informada sobre as perguntas em referendo.
2. Compreende-se a limitação imposta pelo Legislador que prescreve que “a população pode propor a realização de um referendo local, mediante um número mínimo de assinaturas de cidadãos recenseados na área onde se quer fazer esse referendo”: A intenção é a de evitar o afluxo de partidários do “sim” ou do “não” distorcendo o resultado do referendo. Esse é, aliás, um dos problemas dos Orçamentos Participativos onde o fenómeno de “lobbying social ou associativo” é comum o que diminui, no processo, a credibilidade de todo o sufrágio. Contudo, seria interessante avaliar outros modelos que incluíssem, p.ex., o registo eleitoral voluntário a quem trabalha ou estuda na autarquia ou tem relações familiares directas com a freguesia ou câmara municipal: assim se aumentaria a legitimidade dos resultados e, directamente, a probabilidade de se ultrapassar o limite de 50% para tornar vinculativo o referendo local. Quem já recolheu assinaturas na rua em Lisboa (algo que já fiz sete vezes na vida) sabe que a maioria dos cidadãos que abordar na rua não estão recenseados na cidade mas trabalham ou estudam na cidade. Esta intuição foi confirmada nas últimas eleições Europeias onde, na minha mesa, mais de metade dos votantes em mobilidade pertenciam a outros círculos eleitorais.
3. A lei também exclui das matérias a referendar “questões e os atos de conteúdo orçamental, tributário ou financeiro”: ou seja, tudo o que tiver impacto financeiro no orçamento autárquico: Mas quais são as decisões políticas que podem ser referendadas e não têm nenhum impacto financeiro? De recordar que mesmo depois de recolher entre 5 a 7,5 mil assinaturas (números para Lisboa), o referendo é depois submetido para validação ao Tribunal Constitucional e que este tem sido muito rigoroso (até demais) nestas avaliações.
4. Nos estados dos EUA que aplicam a figura do referendo é comum surgirem várias perguntas sobre temas muito diversos no mesmo referendo. O Legislador português fez, contudo, uma avaliação por baixo da maturidade democrática dos nossos votantes quando definiu que “cada referendo tem como objeto uma só matéria”: percebe-se que a ideia era a de evitar a contaminação e influência entre temas e perguntas mas isso é subavaliar o discernimento dos eleitores os quais, sabem, fazer diferenças e prova disso mesmo é que nas eleições autárquicas as votações para as três instituições (Câmara Municipal, Assembleia Municipal e Assembleia de Freguesia) nunca são idênticas.
5. A maior maleita do processo referendário local é, sobretudo, quando a fonte do referendo é a iniciativa popular que tem que ser “proposta à assembleia deliberativa por um mínimo de 5000 ou 8% dos cidadãos eleitores recenseados na respetiva área, consoante o que for menor”. Estes limites estão severamente desactualizados (e deviam basear-se em métricas flexíveis não rígidas) devido à severa sangria de cidadãos para fora de Lisboa, para a emigração ou expulsos para a periferia pela explosão dos preços no imobiliário. É também completamente absurdo que um referendo local tenha praticamente os mesmos requisitos que os necessários para criar um novo partido político.
6. A lei também prescreve que o referendo local apenas pode assumir a forma “escrita” o que, explicitamente, rejeita a assinatura por Chave Móvel Digital ou através da autenticação no sistema da Adminitração Tributária (como é possível, p.ex., no acesso à Segurança Social Directa). A assinatura electrónica, remota e digital, devia ser possível e permitir assim o aumento dos participantes no referendo aumentando o alcance e legitimidade dos seus resultados.
7. É igualmente estranho que depois de todo o tempo, trabalho e atenção que um grupo de cidadãos dedique a um referendo local o produto seja apenas a “conversão da iniciativa popular em deliberação”: ou seja 7500 assinaturas (em Lisboa) podem produzir apenas uma votação em Assembleia Municipal que – pode ser chumbada – e que pode não produzir qualquer efeito real se o Executivo (como sucede tantas vezes) não a decidir implementar algo que ocorre sem penalizações para os Executivos de Junta ou Municipais.
8. É também urgente actualizar a lei que rege os referendos locais para que esta permita a utilização dos Cadernos Eleitorais Desmaterializados e o voto em mobilidade algo que actualmente ainda não acontece.
9. Nos raros referendos locais que conseguiram vencer a pesada malha burocrática participou uma quantidade muito baixa de votantes. Em 2013, em Lisboa o referendo do estacionamento em Benfica teve apenas com 29.95 de participação (e 79,99% de “não”). É essencial aumentar estes níveis de participação reduzindo a carga burocrática imposta aos Referendos Locais e facilitando o acesso aos referendos de iniciativa popular. A abstenção em Portugal segue, geralmente, a regra de quanto mais próxima for a eleição maior é a participação eleitoral. Aplicando essa regra aos referendos locais dir-se-ía que – sem distorções – estes deveriam ter o mesmo nível de participação das eleições autárquicas. Paradoxalmente o número de participantes no referendo de Benfica indicou exactamente o oposto o que revela precisamente o que já escrevi acima: há obstáculos artificiais que impedem uma melhor participação dos cidadãos neste tipo de sufrágios.
10. Na linha do que escreve a investigadora Carla Amado Gomes acredito que a fiscalização de um referendo local por parte do Tribunal Constitucional não devia ser obrigatória: “Tendo em atenção o efeito circunscrito de um referendo local, pensamos que vale mais realizar o referendo e eventualmente vir a julgar ilegal a decisão que dele adveio, do que impedir a sua realização”. Por outro lado, se a proposta de realização de um referendo local tiver sido iniciada por um grupo de cidadãos (iniciativa popular). Tem que ser submetida à Assembleia Municipal para aprovação naquilo que se materializa como um bloqueio da democracia representativa imposto à democracia participativa.
Concluindo, a verdadeira democracia só pode ser alcançada quando é participativa e envolvente para todos os cidadãos, e os referendos representam um dos pilares fundamentais dessa participação democrática. Apesar da sua importância, o referendo local em Portugal tem uma história marcada por restrições e limitações que dificultam a sua implementação e efectividade. Desde a sua criação em 1911, o referendo local enfrentou diversas barreiras legais e burocráticas que impediram o seu pleno desenvolvimento.
A actual Constituição Portuguesa admite a realização de referendos nacionais, regionais e locais. No entanto, a prática tem mostrado uma escassa realização de referendos locais, com apenas um exemplo significativo em Lisboa, na freguesia de Benfica, destacando uma lacuna na participação cívica a nível local. Este facto evidencia a necessidade urgente de revisão e atualização da legislação referente aos referendos locais para remover obstáculos burocráticos, ampliar a participação dos cidadãos e garantir que as decisões tomadas reflictam verdadeiramente a vontade popular.
A implementação de melhorias como a inclusão de considerandos nas perguntas, a flexibilização dos requisitos de assinaturas, a permissão para assinaturas digitais e a simplificação do processo de convocação de referendos são passos cruciais para fortalecer a democracia participativa em Portugal. Além disso, é essencial que o Tribunal Constitucional adopte uma postura menos restritiva, permitindo a realização de referendos locais com maior frequência e facilidade.
Para garantir uma democracia mais robusta e inclusiva, é fundamental que os cidadãos tenham um papel activo e directo nas decisões que afectam as suas comunidades. A reforma dos mecanismos de referendo local é, portanto, indispensável para revitalizar a participação democrática e assegurar que a voz dos cidadãos seja verdadeiramente ouvida e respeitada.