Desde Junho de 2022 que existe em Lisboa uma Assembleia das Crianças de Lisboa. A assembleia resulta de uma parceria entre a Assembleia Municipal, a Câmara Municipal, as Juntas de Freguesia e as escolas da cidade e tinha como objetivo criar um órgão consultivo, informal, que incorporasse duas crianças de cada freguesia lisboeta que se poderiam “pronunciar” sobre “as políticas públicas que envolvem as crianças, nomeadamente a educação, desporto, habitação, espaço público, cultura, direitos sociais, segurança, entre outros temas”. E aqui entra a primeira falta de ambição e o primeiro ato deste teatrinho: “pronunciar” não é sinónimo de “participar”, nem de democracia efetiva e real e entra em clara contradição com o “direito à participação em todas as matérias que lhes dizem respeito está consignado no artigo 12º da Convenção sobre os Direitos da Criança” que encontramos no site da Assembleia Municipal de Lisboa em especial destaque.

Assumidamente, a Assembleia de Crianças de Lisboa visa “promover o acesso das crianças de Lisboa a novas oportunidades de aprendizagem de participação política; desenvolver competências comunicacionais das crianças, de relacionamento interpessoal e de reflexão crítica; proporcionar o diálogo entre as crianças e decisores políticos; capacitar as crianças para participarem no governo da cidade e assim promover participações futuras ao longo da sua vida“.

Mas qualquer uma destas missões não é – ou pode ser – já, neste momento, cumprida pela escola e, nomeadamente, pela disciplina de Educação para a Cidadania? Assim sendo, esta Assembleia é redundante ou, na melhor das hipóteses um golpe de marketing político para promover os seus promotores autárquicos e para atirar mais alguma poeira para os olhos dos cidadãos, num golpe de marketing que faz lembrar a triste e coxa implementação em Lisboa do modelo dos “Fóruns de Cidadãos”.

Uma das poucas potencialidades que poderiam advir da Assembleia das Crianças poderia ser (ou ter sido) o prometido “desenvolvimento de um programa de Orçamento Participativo das Crianças (OPC)” que surge associado a esta assembleia no site da Assembleia Municipal, mas onde está este OPC de Lisboa? Aliás, para onde foi o Orçamento Participativo de Lisboa que era, a par do de Cascais, o melhor de Portugal e que a nova gestão Moedas mandou adiar até às “calendas gregas”? Se nem temos nem vamos ter tão cedo o OP de Lisboa, o que faz esta promessa de um OPC no texto que acompanha a promoção da Assembleia das Crianças no site da Assembleia Municipal de Lisboa? Publicidade enganosa? Atualização por fazer? Incompetência grosseira?

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Por outro lado, se a Assembleia visa “educar para a cidadania” (duplicando as funções da Escola) então não deve educar sobre o que é uma democracia proporcional e eleger não apenas por voto simples, mas implementar mecanismos de voto por primárias, voto preferencial, uninominal e bicameral e eleger uma quantidade de representantes proporcional à população e não um valor cego e simplista de “48 crianças, 2 por cada uma das 24 freguesias de Lisboa”. Ou será que os feitores do modelo da Assembleia das Crianças acreditaram que tudo isto seria demasiado complicado para elas? Na verdade: não acredito. Mas acredito – plenamente – que todos estes conceitos são demasiado complexos para alguns dos nossos representantes autárquicos.

Se tudo isto está mal: perguntará o leitor: então o que poderia ter sido feito? Não basta levar “em consideração as propostas e opiniões das crianças, expressas na assembleia, na elaboração das políticas públicas da cidade de Lisboa”, como se promete na “Assembleia das Crianças”: pode começar-se por integrar poderes efetivos nas decisões que afetam as crianças, dar-lhes um orçamento para gerir e um Orçamento Participativo das Crianças de Lisboa.

Pode determinar-se, por força de Lei da República, que as crianças desta assembleia terão de ser obrigatoriamente ouvidas pela Câmara e Assembleias Municipais em assuntos que lhes digam diretamente respeito. Isto mesmo já acontece no Parlamento Esloveno, por exemplo, onde o Ministério da Justiça consultou várias crianças antes de propor uma alteração legislativa. Na Alemanha e na Turquia, os parlamentos têm comissões especiais para os assuntos ligados às crianças e estas encontram-se regularmente com crianças para conhecerem as suas preocupações e anseios.

Na Dinamarca, todos os anos, as escolas organizam eleições em que os alunos entre os 13 e os 16 anos replicam tudo o que se faz nas eleições regulares. Na Geórgia, o projeto “A democracia começa nas escolas” tem o objetivo de reforçar a democracia através do aumento da participação de crianças e jovens nos processos de decisão ao nível local com âmbitos práticos no que respeita à gestão das escolas. No total, o projeto tem um orçamento de 700 mil euros e visa dar aos jovens e crianças um papel ativo na gestão das suas escolas. Para além desta forma de co-gestão, o projeto inclui também a criação de iniciativas partilhadas com organizações da sociedade civil e organiza uma conferência anual onde são apresentados os melhores resultados de cada escola. Algo de semelhante poderia e deveria existir em Portugal.

Na “Garston Primary”, em Liverpool, no Reino Unido: as crianças participam ativamente no processo de gestão escolar ao longo de todo o seu percurso académico. Aqui as crianças podem votar nos contos infantis, nos jogos e nas atividades escolares, debatendo antes de votarem. As crianças da escola votam para o conselho escolar, escrevem os seus próprios manifestos e apresentam-nos nas aulas e votam em urna. As crianças assim eleitas participam no conselho escolar apresentando as suas opiniões e propostas ao resto do conselho. Todos os anos, algumas destas crianças são escolhidas para visitarem o Parlamento de Londres, participam em debates e aprendem como funciona a democracia parlamentar.

Tanto quanto foi possível apurar, nada de parecido se passa em nenhuma escola em Portugal. Apesar de alguns progressos recentes no que respeita à participação dos jovens, estes progressos, contudo, tiveram um impacto direto na inclusão nos processos representativos: na feitura e aprovação de leis e nas componentes eleitorais mais passivas: a capacidade de voto.

Em 2016, um conjunto de personalidades assinaram o Manifesto pela Democracia nas escolas em que se reclamava que “apesar dos princípios consagrados na Lei de Bases dos Sistema Educativo, assistimos a uma crescente desvalorização da cultura democrática nas escolas e à anulação da participação coletiva dos professores, dos alunos e da comunidade educativa. Verifica-se, pelo contrário, uma tendência para a sobrevalorização da figura do(a) diretor(a) de escola ou de agrupamento de escolas, sendo, ao mesmo tempo, subalternizado o papel de todos os outros órgãos pedagógicos, e desencorajada a participação de outros elementos da comunidade escolar.

A teoria democrática clássica excluiu sempre as crianças e os menores de idade, mas os jovens e as crianças de hoje têm ao seu alcance uma quantidade de informação – em bruto ou trabalhada – que nunca existiu em nenhuma das gerações precedentes. E embora seja certo que democracia não é apenas representação mas também cidadania e participação, é igualmente verdade que a verdadeira e mais eficaz representação se faz pelo exercício do direito de voto e que este está excluído em Portugal a todos os menores de 18 anos.

Talvez importasse refletir sobre a descida da idade de voto. E a utilização de uma ferramenta como a Assembleia das Crianças poderia funcionar como uma forma de trazer representação democrática aos mais de 1.7 milhões de crianças (cerca de 17% da população total) e dar formação para uma vida política e cívica de qualidade. Contudo, isso não vai acontecer enquanto usarmos o modelo limitado e mediatizado das Assembleias das Crianças de Lisboa: uma oportunidade perdida.