Numa verdadeira democracia os representantes eleitos não têm legitimidade para abdicar do poder que receberam da população. Em Portugal, isto é feito continuamente desde 1986 sem qualquer legitimação. Para quando um referendo?

Os referendos servem para consultar a população maior de idade e responsável, que é quem detém a soberania nas sociedades verdadeiramente democráticas, para resolver assuntos sobre o qual os representantes eleitos não estão mandatados ou não têm capacidade ou disposição para resolver.

Esta parece ser uma ideia simples e consensual, mas não é. Os governos democráticos evitam ao máximo os referendos, e irão continuar a fazê-lo enquanto puderem. A razão é só uma: como o seu resultado não é sempre o desejado, os governantes raramente querem prescindir de ser eles a decidir. Para o justificar recorrem a três argumentos contra os referendos.

O primeiro é a complexidade de decisões como a construção de um hospital, com uma componente eminentemente técnica e requerendo muita informação para se poder fazer uma escolha racional. Nestes casos, é mais racional para os votantes manterem-se na ignorância pois o custo da recolha de informação suficiente para fazer uma escolha informada é superior ao potencial benefício que poderia daí resultar.

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Este argumento é válido para questões de natureza técnica em que os peritos têm um conhecimento especializado, mas não se aplica a assuntos que envolvam questões morais ou de valores. Em Portugal, e apesar de a vida não ser referendável, o Tribunal Constitucional inventou maneira de ultrapassar esta limitação para seguir a moda dos tempos e permitir a realização de dois referendos sobre o aborto.

A este argumento junta-se um outro que defende que um assunto muito complexo não deve ser decidido numa simples pergunta de “sim ou não”. Esta recusa da simplicidade tem sido explorada no caso do Brexit por quem não gostou do resultado do referendo. Mas o significado da decisão de sair não apresenta quaisquer dúvidas para quem seja minimamente honesto consigo próprio, nem mesmo para os que não querem sair. A decisão de entrada do Reino Unido também foi tomada da mesma forma e nunca foi levantada a questão da simplicidade da resposta.

O terceiro argumento é o de que estamos numa democracia representativa e portanto os representantes têm carta branca para decidir o que quiserem. Trata-se não só de um argumento usado por quem não gosta de referendos e dos seus resultados mas também por uma elite que acha que sabe sempre o que é melhor para todos. Essa foi, aliás, a atitude dos responsáveis da UE a seguir aos tristemente célebres referendos à proposta de Constituição Europeia.

No entanto, pelo facto de os argumentos contra os referendos terem falhas deve a democracia participativa ser a solução? Não, acalmem-se os que já estão a dar pulos de contentamento. Por muito atractiva que possa parecer, a ideia de democracia participativa proposta por Rousseau é um perigo por facilitar a demagogia e a manipulação de sentimentos.

Como Locke explicou, no período entre eleições e enquanto o governo democraticamente eleito subsistir, é o parlamento que detém o poder legislativo e a população limita-se a ser sua súbdita. A regra deve ser a democracia representativa, que é válida para a quase totalidade das decisões, mesmo havendo excepções que apenas a confirmam.

Uma excepção são as questões que envolvem valores morais complexos, como o aborto ou a eutanásia. Nestes casos, os representantes preferem frequentemente, e comodamente, prescindir da sua capacidade de decisão porque estão divididos, têm muitas dúvidas sobre a questão ou temem ser eleitoralmente prejudicados com a escolha que façam. Desta forma ficam com a sua consciência liberta das consequências da decisão e devolvem-na aos eleitores.

A segunda excepção é a opção dos representantes em prescindir em definitivo do poder de decisão que lhes é concedido pelos eleitores. Isto pode acontecer com a abolição da democracia e das eleições livres, que sendo feita contra os interesses dos eleitores só poderá ser implementada à força e contra a sua vontade (existe também o paradoxo de serem os próprios eleitores a quererem acabar com a democracia, mas não é essa aqui a questão).

Nesta segunda excepção inclui-se também a decisão de prescindir do poder de decisão de uma forma definitiva transferindo-a para terceiros. Os representantes tomam a decisão de ceder o poder pelo qual foram incumbidos pelos eleitores sem os consultar. Mas como Locke também referiu, o poder legislativo não pode ser legitimamente entregue a terceiros durante o período entre eleições. Esta decisão, por ser definitiva e não poder ser revertida pelos eleitores, requer o seu consentimento expresso, devendo ser explicitamente apresentada antes de eleições ou referendada.

Não é difícil perceber que esta excepção abrange a transferência de poder de decisão para as instâncias da União Europeia, que é definitiva e que em Portugal ocorre paulatinamente desde 1986 sem que nunca nenhum português tenha sido chamado a pronunciar-se a esse respeito.

Alguns exemplos confirmam esta abdicação de poder e demonstram a insuficiência do argumento de que os resultados das eleições nacionais validam a transferência de poder de decisão de qualquer país para a UE:

  1. A adesão ao Euro é paradigmática a este respeito, pois é definitiva — Portugal está preso ao Euro pois não depende apenas de si para sair — e os que a defendiam negaram sistematicamente que estaria em causa qualquer transferência de poder de decisão;
  2. Apesar dos referendos que chumbaram a proposta de Constituição Europeia, as suas disposições foram consagradas na legislação da UE à revelia das populações;
  3. Mais de metade da legislação na área económica é aprovada actualmente na UE com reduzido controlo democrático;
  4. Em Portugal, ou em outros países da UE, nunca os partidos concorrentes em eleições disseram aos eleitores que “se nos elegerem vamos transferir decisões sobre as vossas vidas para Bruxelas”.

Haverá argumentos que defendam a legitimidade jurídica da alienação do poder para terceiros: como mostram algumas decisões dos tribunais constitucionais por esse mundo fora, há sempre forma de dar a volta à questão pois o direito não é uma ciência exacta e a interpretação das leis ainda menos.

Mas como revela o terceiro volume da biografia autorizada de Margaret Thatcher, o espírito democrático da ex-primeira ministra britânica levou-a a considerar que todas as cedências definitivas de poder de decisão deveriam ser referendadas. Não houve até agora uma única que o tinha sido em Portugal. Até quando?

O texto reflecte apenas a opinião do autor