Pedro Costa, deputado à Assembleia Municipal de Lisboa pelo PS e presidente da Junta de Freguesia de Campo de Ourique, assinou na semana passada, aqui no Observador, uma descrição argumentada da política de mobilidade do partido dele. Pressupondo agressões injustas, chamou ao exercício “Três mitos sobre uma visão de mobilidade”. Vamos examinar cada um desses pontos e o que eles nos indicam vistos em conjunto.
1 “O PS acha que todos devem andar de bicicleta”
A palavra bicicleta só aparece no título; para descrever o “mito”, ele usa o horrível eufemismo “mobilidade suave”, que só é suave enquanto as pessoas não partem a boca ou as rótulas dos joelhos. Pedro Costa explica que a bicicleta melhora a circulação de automóveis, pelo seguinte expediente de álgebra elementar: quem vai de bicicleta não vai de carro. É uma boa observação, convenhamos: quando uma criatura, em determinado dia, faz de bicicleta um determinado trajecto, essa criatura tendencialmente deixa de o fazer de carro, por não ser costume multiplicar-se em duas criaturas: uma, mais velhaca, ao volante, contaminando o ar; e outra de bicicleta, rosada de saúde física e cívica, largando atrás dela irrespiráveis vapores de virtude. É desta maneira engenhosa que, na visão do PS, as bicicletas deixam espaço livre nas faixas de rodagem para “quem precisa” de utilizar o carro.
O que dizer disto? Que não é uma política; será quando muito um desejo, uma superstição, ou uma fé. Teríamos de saber quantas pessoas deixaram de andar de carro e passaram a andar de bicicleta, até para seguirmos o raciocínio de Pedro Costa: supõe-se que em cada carro transite pelo menos uma pessoa, e o mesmo será sensato pressupor no selim de uma bicicleta. Escusado será dizer que as ciclovias tiraram faixas de rodagem (e muitos lugares de estacionamento); tiraram, não acrescentaram. E nas ciclovias vemos sobretudo miudagem dos liceus, turistas, e estafetas das empresas de entregas; o resto, à vista desarmada, é residual.
2 “O PS persegue os carros”
Pedro Costa defende que esta ideia decorre de um erro de campanha em 2021, e que estará na origem de um mal-entendido. Explica que o PS “investiu” muito dinheiro na “mobilidade automóvel” – e na Carris, em parques de estacionamento, e num monte de outras “apostas”. Incomparavelmente mais dinheiro do que nas bicicletas. Mas a atenção mediática só se voltou para as ciclovias (ou para a “mobilidade suave”).
Este ponto merece dois comentários. O primeiro é que não se trata de um mito, mas de uma realidade. O PS efectivamente “perseguiu os carros”, ou perseguiu o uso dos carros e as pessoas que o escolheram. Os êxitos das políticas não se medem em volume de orçamento, de resto, um indicador incerto e susceptível de ardilosas deformações. As ciclovias são muito baratas, custam o preço de uns riscos no alcatrão, mas incomodaram e ainda incomodam demasiadas pessoas. Foram determinantes na transformação do trânsito num inferno.
O segundo comentário é que a atenção mediática voltou-se para as ciclovias porque o PS assim quis. Foi uma política de comunicação deliberada, servindo ao PS para seduzir e justificar a extrema-esquerda. E para ceder às exigências do radicalismo com quem o PS governou Lisboa durante 14 anos seguidos. Os arranjos do PS com a extrema-esquerda não foram inventados por António Costa, nem nasceram em 2015 com a geringonça. Eles existem há décadas, pelo menos desde Jorge Sampaio, e foram testados e aperfeiçoados no governo da cidade de Lisboa. Mais uma razão séria para o jornalismo prestar atenção ao que se passa aqui, e não cair na simplicidade de achar que só um orçamento mais volumoso – extravagantemente volumoso – distingue Lisboa de qualquer outra câmara municipal do país.
3 “É possível alterar o paradigma sem chatear ninguém”
Comentário? Tem razão. Não se fazem mudanças sem incomodar alguém (ou então as mudanças são irrelevantes). E sim, vai ser preciso discutir estas coisas com coragem e seriedade. O texto de Pedro Costa explicou a política de mobilidade do PS. O PS escolheu não incomodar o radicalismo e a extrema-esquerda. Mas, mais importante, nunca se refere aos 370 mil automóveis que entram em Lisboa todas as manhãs, de segunda a sexta-feira, para voltar a sair ao final da tarde; e que triplicam o número de automóveis em circulação dentro da cidade aos dias de semana. O PS acha possível e sério discutir mobilidade sem enfrentar este número.
Moral da história
O PS já compreendeu que a remoção das ciclovias é um trabalho que tem de ser feito. Quer que seja Carlos Moedas a fazê-lo, para que a maioria das pessoas deixe de sentir-se abusada pelas políticas aleatórias que os fanáticos impõem. Desta maneira, será sobre Moedas, e não sobre o PS, que cairá o ódio religioso dos ciclistas quando ele aparecer brutal, violento, incontinente e vociferante.
Moral da moral da história
Moedas devia fazer o que o PS não pode ou não quer fazer. E devia acabar de vez com as ciclovias no centro de Lisboa, pelo menos nas avenidas principais, como prometeu aos eleitores e como lhe pedem todos os dias os presidentes de junta das freguesias mais afectadas. Porquê? Por uma razão simples. Cabe ao PS ceder às exigências da esquerda e do radicalismo, e cabe a Carlos Moedas satisfazer os eleitores da direita com políticas de mobilidade racionais e sensatas. Não vamos inverter a ordem natural das coisas.