Vinte e dois de Setembro, Dia Europeu sem Carros. A virtude bem pensante escorreu das colunas de som na Assembleia Municipal de Lisboa, sob a forma de Votos de Saudação e comentários a pretexto. Que os carros eram piores do que o Mefistófeles, parecia ser o entendimento geral. Era imperativo agir com determinação contra a “mobilidade individualista”, “centrada no automóvel” e outras velhacarias. Os deputados, de olhos húmidos, pediam um “modelo de desenvolvimento mais humano e inclusivo”, seja lá o que isso quer dizer. Com esta idade e com os anos de actividade política que já levo ainda me sinto atrapalhada quando, de um momento para o outro, o mundo à minha volta parece responder a lógicas da mais espantosa idiotia. Vou, obviamente, em sentido contrário. Esta objurgatória urban-trendy contra os automóveis é leviana, injusta, cobarde e despótica.

Antes de avançarmos, convém esclarecer que não há “muitos carros” (ou “demasiados carros”) a circular em Lisboa. Há muitas pessoas – cada carro leva pelo menos uma, por enquanto. Há muitas pessoas que precisam de estar ali, naquele engarrafamento, naquele incómodo. Que escolheram, na sua liberdade, e apesar de tudo, feitas as contas e os desconfortos e o mais que as pessoas ponderam para tomar decisões, escolheram vir de carro. Para elas, essa é uma escolha que faz sentido. São adultas. E por mais que isso custe, quer à esquerda, quer à direita que toma as dores da esquerda, na parte que não for ilegal as pessoas são donas das suas decisões. Era bom que os senhores governantes, os eleitos nas assembleias, os escritores de papéis, e todos quantos se ocupam de honrar o debate público com a sua inexcusável opinião, dedicassem 10 minutos a pensar nesta prática, que se cola à retórica política, de despersonalizar aquilo que desagrada a quem manda. “Os carros” isto e aquilo. As coisas simplesmente não são assim, os carros não têm vontade própria nem tomam decisões, isso não existe. O que existe são as pessoas que os conduzem. E essas pessoas têm dificuldades na vida delas. Além disso, estão no seu pleno direito: o carro é uma extensão da liberdade individual, que deve ser respeitada.

Mesmo a indústria automóvel é importante e respeitável. Um dos documentos que a Assembleia Municipal discutiu dizia que “os carros significam hoje cerca de 15% das emissões de CO2 na União Europeia”. Aquele papel não dizia, nem ninguém se lembrou de investigar, qual era a percentagem de dióxido de carbono (CO2) que os carros em média emitiam há dez anos. Ou há vinte. Isto porque a indústria automóvel não se limita a criar postos de trabalho, pagar impostos altíssimos, e estender ramificações a outras indústrias e actividades económicas periféricas, como os têxteis, as borrachas, a metalúrgica, os moldes, ou a electrónica. Ela também tem estado na vanguarda da investigação e desenvolvimento de métodos cada vez mais eficazes para obter o máximo de rendimento a partir do mínimo possível de consumo de recursos. O que não se aplica apenas aos carros. A tecnologia que a indústria automóvel desenvolve tem permitido grandes resultados no aproveitamento energético, aplicáveis a todos os motores ou sistemas mecânicos, como a climatização, refrigeração, e quaisquer aparelhos usados na construção e equipamento dos próprios edifícios.

Basta olhar para a rua com atenção e logo se comprova que hoje são raras as marcas que não têm modelos eléctricos ou, pelo menos, híbridos. Basta pensar em tudo isto para compreender que asfixiar a indústria automóvel conduz à asfixia de todas as formas de mobilidade, incluindo ambulâncias, carros de bombeiros, transportes colectivos, e até aquele eufemismo a que chamam “mobilidade suave”. É absurdo insistir em demonizar a indústria automóvel, que a vida moderna não pode dispensar e que proporciona conforto a todos os cidadãos. Por outro lado, numa altura em que todo o cão e todo o gato jura governar “com as pessoas” e “para as pessoas” (“concretas”), os senhores a quem me refiro deviam parar com a despersonificação e reconhecer que perseguir “os carros” é um exercício que não existe. O que existe, o que uns fazem e outros defendem, é perseguir as pessoas que andam de carro. Em vez de exibir bons sentimentos, metam a mão na consciência.

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