A chave da sanidade da democracia portuguesa está dentro da cabeça de Ricardo Salgado. Se o Ministério Público acertou, e se de facto o antigo banqueiro tiver corrompido o primeiro-ministro e o ministro da Economia do mesmo governo, então este será apenas o começo de várias perguntas difíceis a que só Salgado pode responder — porque só ele sabe o que pediu, a quem pediu, quando pediu e, sobretudo, sendo esse o caso, por quanto pediu.
Há, por exemplo, esta pergunta: o XVII Governo Constitucional foi uma anomalia do regime, que uniu pela primeira vez na História de Portugal a política, a economia e o dinheiro negro em offshores? Ou esta: essa coincidência foi tão extraordinária que juntou à mesma mesa, na mesma sala, não um mas dois governantes disponíveis para receber, ouvir e servir o banqueiro mais poderoso do país? Ou ainda esta: os motivos que explicam a desagradável fama do homem a que chamavam “Dono Disto Tudo” começaram a 12 de Março de 2005, quando José Sócrates tomou posse, e terminaram a 5 de Junho de 2011, quando foi sumariamente despedido? Ou mais esta: antes de Sócrates e de Pinho, Salgado vivia banhado em pureza e virtude?
Estas perguntas não são, infelizmente, para a política — que não viu o que toda a gente vê e permitiu o que toda a gente sabe, fosse nos partidos, no Parlamento ou no Conselho de Ministros. Aliás, na política que temos, quanto mais perguntas se fazem, mais desanimadoras são as respostas. Para os nossos deputados, por exemplo, misturar tudo é, como se sabe, a melhor forma de não esclarecer nada. Aliás, os partidos preparam-se para fazer isso mesmo no caso Pinho, com uma comissão de inquérito que multiplica os suspeitos para ilibar os acusados. Aquilo que podia ser a ponta de um comprometedor novelo vai transformar-se, como sempre, num novelo sem ponta por onde se lhe pegue.
Mas não precisava de ser assim. Para responder às terríveis perguntas que assombram a nossa democracia, podíamos ter a justiça. E bem podem guardar as proclamações apocalípticas sobre a “república dos juízes”. Qualquer pessoa que tenha lido a Constituição (e entendido aquilo que leu) sabe que os tribunais não são usurpadores do poder, são órgãos de soberania independentes; não vêm de fora do regime, fazem parte dele; e, em situações excepcionais, não o derrotam, salvam-no, como já o salvaram Presidentes da República ou primeiro-ministros.
Nos Estados Unidos e no Brasil, os magistrados descobriram nos últimos anos vários homens-bomba que detonaram instituições. Isso aconteceu porque todos esses suspeitos tiveram dois incentivos irresistíveis para falar. Um, a rapidez: lá, a justiça chega muito depressa à cadeia, com os americanos a serem presos ao fim da condenação em primeira instância e com os brasileiros a serem presos ao fim da condenação em segunda instância, independentemente dos muitos e justos recursos. Outro, a negociação: nos Estados Unidos, o sistema está desenhado para premiar a confissão; no Brasil, está desenhado para premiar a delação.
Em Portugal, onde nos julgamos sempre mais virtuosos, nada disso existe. O sistema judicial americano e brasileiro é uma colónia penal; o nosso é uma colónia de férias. A máquina judicial portuguesa não pressiona, descansa. Com um processo que pode demorar uma década entre investigação, acusação, instrução, julgamento e recursos, o que tem a temer um ex-banqueiro com 74 anos e sem problemas de fortuna?
Sobram, por isso, as sombras, as dúvidas e as suspeições. O que realmente aconteceu com Sócrates e com Pinho? E o que realmente aconteceu com outros, além de Sócrates e de Pinho? E o que realmente aconteceu antes de Sócrates e de Pinho? Eu não sei, mas Ricardo Salgado sabe de certeza. Ao incentivar o seu silêncio, o sistema evita uma possível hecatombe mas alimenta uma desconfiança que corrói e destrói.
Era melhor descobrirmos tudo e descobrirmos já — até porque a ameaça de explosão podia acabar num suspiro. Ainda esta semana, respirando com descontração o ar quente da Primavera, Ricardo Salgado assegurou aos jornalistas que “nunca na vida” corrompeu alguém. Afinal, tudo isto pode ser um enorme equívoco. É sempre uma hipótese.