Na biologia, quando os animais se deparam com uma ameaça, uma resposta é desencadeada pelo seu organismo, a chamada fight-or-flight-or-freeze. Ou tentamos lutar, ou fugimos ou, ainda, paralisamos. Trata-se de modos de encarar os perigos que nos permitiram a sobrevivência, dado que esta resposta involuntária informa o nosso corpo de quando parece ser útil ir a combate, dar de frosques ou ficar imobilizado. Ao nível da consciência humana, quando detemos as capacidades analítica, de reflexão ética e de ponderação social, já se torna mais difícil estar na posse do conhecimento acerca de quais as atitudes e os comportamentos a ter aquando de situações polémicas ou, até mais do que isso, que colocam demasiadas peças em jogo.

Michel Foucault, filósofo francês, em Vigiar e Punir, traz-nos, na minha ótica, uma visão muito curiosa sobre a violência antiga e a da modernidade: é que a menor quantidade de dor não significa, na verdade, uma maior humanização do processo de punição. Não é por vermos menos chicotadas e sangue e mais prisões e vigilância que o caráter de sancionamento da alma – objeto do castigo, ao invés do corpo como acontecia na Idade Média – se dissipa ou se atenua. A violência ainda existe, apenas se reconfigurou e hoje visa outro elemento da nossa espécie, sendo o físico trazido por arrasto.

Os dois primeiros parágrafos levam-me, pois, a pensar no cenário bélico a que hoje assistimos no cerne do continente europeu. A globalização contribui para a sincronização alargada das informações de última hora, que são trabalhadas de forma ininterrupta pelos media. Conseguimos assistir a um conflito armado de larga escala em direto, acompanhar a cada minuto que notícias sobre os países e as instituições envolvidos são divulgadas e estimular o nosso confrangimento pela devastação e destruição de vidas humanas em território ucraniano. Com tanto dano e tanta ruína, pelo menos uma das três opções seguintes emerge: ou nos colamos às televisões sem largar o que quer que a guerra nos dê como novíssimos relatos, ou mudamos de canal ou de site, ou tentamos dar apoio a pessoas ucranianas e russas discordantes da guerra como ferramenta de poder contra os desígnios do ditador Vladimir Putin e seus/suas acólitos/as. No fundo, damos luta, escapamos ou petrificamos – ou até preenchemos os requisitos para verificarmos as três hipóteses.

Mas a elevada dose de comoção e exasperação com que certamente todos/as olhamos para esta guerra mostra-nos que o mundo não está menos perigoso – logo, também não está menos violento. Não nos confrontamos, ao contrário do que já se previu, com o fim da história, porque ela é capaz de dar voltas impensáveis para nos fazer repensar estilos de vida e arquiteturas de pensamento. Se se acreditava poder tratar-se das hostilidades políticas através de negociações diplomáticas, a invasão da Ucrânia provou-nos que a força do músculo e dos instrumentos pesados continua, na cabeça, nas palavras e nos atos de muitos/as, a ser decisiva na gestão das relações e das suas complexidades.

O insuflar dos egos é um segundo fator que contribui para o acender das tiranias e para relembrar que a instabilidade está sempre à espreita. Não só do lado de quem ataca, mas também do de quem tenta ajudar os/as resistentes, são levados a cabo paternalismos cuja pretensa autoridade passa por saber mais, logo, poder mais. Foucault também nos alertou para esta relação de poder e saber, que são mutuamente constitutivos e nunca se encontram exteriores um relativamente ao outro. O Kremlin acredita que conhece a verdadeira história da Rússia e do surgimento do seu império e da sua nação, advogando que ucranianos/as e russos/as são um povo só; convicto nestes argumentos mobiliza o seu poder militar para confirmar e fazer confirmar a posição defendida. O próprio discurso, numa linguagem foucaultiana, é uma arma de produção e transmissão de poder.

Felizmente, onde existe poder acaba por haver também resistência. Mas podemos questionar-nos até onde irão as tropas russas e até quando durará a defesa do Presidente Zelensky e respetivos/as aliados/as. Definitivamente que os silêncios não são a melhor resposta que, enquanto cidadãos/ãs, podemos dar. Que pelo menos discutamos o que neste momento ocorre no nosso mundo e dita o seu futuro nos próximos tempos. Mas saibamos, em simultâneo, que nenhum modo de encarar este acontecimento é sinal de fraqueza, sendo antes completamente legítimo. Afinal, os riscos do passado continuam bem presentes e bem vivos neste – até há alguns dias – próspero século XXI.

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