Dizem-me ser insensato ficcionar o que nunca chegou a ser; que é absurdo sonhar com apenas mais um poema completo de Safo (elevando o total global para dois); conjecturar as setenta e cinco peças perdidas de Ésquilo, as cento e dezasseis de Sófocles ou as setenta de Eurípides; fantasiar a recuperação da Medeia de Ovídio; de uma só das muito admiradas elegias de Cornélio Galo, amigo de Virgílio (que outrora ocuparam quatro livros e das quais sobrevive hoje um único verso) para já não falar dos livros fundamentais que faltam aos Anais de Tácito. Leio Salústio – “Estas coisas não aconteceram nunca, mas existem para sempre” – e pergunto: será?
Enquanto Eetes descrevia a prova em troca da qual lhe entregaria o Velo de Ouro – jungir num arado dois bois de cascos de bronze e hálito de fogo; levá-los a semear quatro alqueires de dentes de dragão de que, como espinhos, brotariam guerreiros armados que o rapaz teria de matar e segar; devolver a parelha, ainda antes do anoitecer, ao prado de Ares onde pela manhã os recolhera – abateu-se sobre Jasão o pequenino silêncio da mesquinhez e da vingança. Eetes desconhecia o umbral para além do qual uma prova já não produz heróis, mas loucos. O que exigia a Jasão já não era heroísmo, mas desmesura.
Foi com palavras desconsoladas que Jasão narrou as ordens de Eetes aos companheiros que, a bordo do Argo, se entreolhavam, em silêncio, diante da perspectiva de um desastre que parecia irremediável: teriam eles decidido navegar até à remota Cólquida apenas para descobrir que afinal não podiam decidir nada?
Esqueceram-se de que nunca existe nada que seja preto ou branco, um beco sem saída. Não existe a escuridão absoluta, há sempre uma luz, sobretudo quando ela projecta as sombras mais densas. Mesmo quando a escolha parece insanável, porque imposta por outros, podemos ou devemos tomar uma decisão; é inútil invocar o destino, a sorte, a falha alheia, a injustiça ou a vileza do mundo. Todos somos chamados diariamente a escolher, ou melhor, a discernir, a olhar para dentro, a escutar-nos verdadeiramente, a conhecer-nos e a agir.
«Discernir» – uma belíssima palavra que já quase ninguém usa – deriva do verbo latino discernere, que, por sua vez, provém de um outro (cernere), que originalmente indicava o minucioso gesto de separar a farinha do farelo, embora mais tarde tenha significado a atividade ainda mais delicada de peneirar os nossos pensamentos, sobretudo os mais pequenos, tão impalpáveis como o grão moído, para poder separá-los; para saber “criticá-los”, isto é, ponderá-los, sopesá-los pelo que são e pelo que valem e, por fim, decidir. “Crítica” é um termo com origem no grego κρίνω (crínō), “escolher”, do qual deriva esta palavra hoje proibida, por todos a interpretarem como uma agressão, um ataque pessoal, uma infâmia, quando, na realidade, significa, simplesmente, saber apartar as ideias com precisão, para conhecê-las melhor e depois julgá-las.
A crítica é uma atitude profundamente humana, que exige sabedoria, amor, inteligência, algum cepticismo e, acima de tudo, assunção de responsabilidades. Todas as nossas perguntas vêm do exterior, de fora, quase sempre sem serem anunciadas com antecedência.
As respostas, pelo contrário, vêm do nosso interior; e sabemos todos muito bem como tantas vezes não queremos ouvi-las ou não conseguimos manter o esforço de sinceridade e de diálogo interior que saber escolher de forma crítica – e, portanto, livre – exige.
E foi de novo o mais perspicaz dos Argonautas, porque sabia ver dentro de si para poder olhar adiante, que respondeu a Jasão: tal como a coruja de olhos glaucos, símbolo de Atena, que protegia a viagem dos Argonautas, Peleu também sabia ver no escuro e ler o não dito para iluminá-lo depois com palavras. Recordou aos companheiros que não importa a que provação um homem seja sujeito por outros, por desproporcionada que seja. A única escolha que verdadeiramente conta acontece no coração que deve fiar-se da sua força e coragem. Não há melhor via para o fracasso do que, conscientemente, escolher ir contra si mesmo, pensando não existirem alternativas e trair a única fidelidade que na vida merece o maior respeito: a fidelidade a si mesmo, às próprias promessas, à própria mesura.
Jasão percebeu que a coragem não poderia vir senão da determinação do seu espírito. Fizera já a sua escolha: desafiaria Eetes e enfrentaria a terrível prova. E foi nesse momento que uma pomba branca, fugindo às garras de um falcão, caiu, assustada, no seu colo – um sinal claro de Afrodite, deusa do amor. E Jasão já só tinha uma ideia no seu espírito: Medeia.
Deitada na cama, depois de chorar tanto, Medeia caiu num sono profundo. Mas imediatamente a angústia lhe enviou sonhos terríveis, portadores de engano e inquietude: parecia-lhe que o estrangeiro aceitara o desafio imposto pelo seu pai de levar para a Grécia não apenas o valiosíssimo velo de ouro, mas também a ela, como sua mulher. Parecia-lhe ser ela quem domava os touros e lutava contra os guerreiros armados com surpreendente facilidade graças às suas artes mágicas, que provocou a brutal ira de Eetes. E, no seu sonho, Medeia viu-se chamada a dirimir a disputa insolúvel entre o seu pai e os estrangeiros e a ter de decidir, irrevogavelmente, o lado que iria tomar; de imediato a menina se inclinou a seguir os ditames do seu coração e escolheu o estrangeiro.
Acordou e saltou do leito; o seu coração batia de angústia e os gritos do pai e do homem que amava enchiam ainda a sua cabeça, enquanto à sua volta tudo permanecia em silêncio. Medeia sentiu que chegara a sua hora, a hora de decidir com os olhos bem abertos. «Quero um coração grande e ousado», e decidiu pedir ajuda à irmã, que dormia no quarto ao lado. Descalça e vestida apenas com uma túnica leve, a menina saiu a correr do quarto, mas deteve-se imediatamente no pátio, contida pelo pudor. Virou-se e voltou para a cama; saiu uma outra vez, atirou os lençóis ao ar e correu de volta para seus aposentos.
Três vezes tentou e três vezes se deteve. À quarta, atirou-se para a cama a chorar. Não conseguia decidir-se, primeiro movida pelo desejo e depois forçada a recuar pelo pudor. A indecisão tornava-a como o mar. Balançando para frente e para trás, sem nunca avançar. Não sabia como falar de si mesma, nem consigo mesma. Por vezes as palavras assomavam-lhe à língua, outras voavam para o fundo do peito. Muitas vezes saltavam nos seus deliciosos lábios para serem pronunciadas, mas não conseguiam ir mais longe, porque lhes faltava voz.
Por fim, Medeia deixou-se levar pelo amor. O seu coração voou cheio de alegria, o seu rosto ficou mais doce, o prazer turvou a sua visão. A sua era a felicidade de nos aceitarmos, aquela que nos faz mais formosos, mais ligeiros, mais íntegros, completos enfim, com todos os nossos vazios preenchidos. Resolveu que, na madrugada do dia seguinte, enviaria a Jasão a poção que o tornaria invulnerável e que guardava no seu cofre.
Pela bula que instaurava o calendário com o seu nome, Gregório XIII ordenou que o dia imediatamente a seguir a 5ª feira 4 de Outubro de 1582 fosse a 6ª feira 15 de Outubro. Esses dez dias (mas podiam ser décadas) jamais vividos por alguém permanecem intactos, tecendo em fios de luz aquilo que, não tendo sido, existe.
No cofre de Medeia, não existe bad timing: as coisas que nunca aconteceram permanecem. Para sempre.