Sinto-me resfriado. Metade das pessoas que conheço também. Os leigos dizem que anda para aí uma virose. Os médicos, pelo menos dois, dizem que isto é o resultado de quase três anos de protecções, distanciamentos e clausuras: protegemo-nos tanto que ficámos permeáveis a qualquer irrelevância.
Os actos têm consequências, e o intróito acima pretende ser uma analogia. A fim de enganar pategos, atribui-se a inflação vigente à Covid e à guerra na Ucrânia. Os senhores que mandam no mundo culpam a Covid e a guerra. Os senhores que mandam em Portugal culpam a Covid e a guerra. Os senhores que cumprem as ordens dos senhores que mandam culpam a Covid e a guerra. E os pategos repetem a cantilena que, com a eventual ressalva do sr. Putin, isenta toda a gente de comprometimentos na profunda desgraça em que nos vemos enfiados: a Covid e a guerra.
Pondo de lado a toleima que já era anterior a 2020, do dinheiro barato às dívidas em rédea solta, dos “investimentos” públicos à gordura dos estados, a parte da guerra desmente-se com um simples gráfico, daqueles que exibem a curva inflacionária lançada para o alto bem antes de Fevereiro de 2022. A parte da Covid não é muito mais difícil de desmentir. Mesmo não sendo especialista, ao contrário das incontáveis personagens que iam às televisões prever o exacto oposto do que acabaria por acontecer, acho esquisito que, sozinho, um vírus respiratório consiga fechar fábricas e negócios, prender a população em casa com salário e conta na Netflix, estrafegar a produção e as cadeias de distribuição e a oferta face à procura, imprimir dinheiro com frenesim de modo a patrocinar a empreitada e, por uns tempos, imaginar que a empreitada não teria custos.
Sucede que, logo em Março ou Abril de 2020, os custos eram óbvios. Lembro-me de, numa violação gravíssima das regras então em vigor, dar um demorado passeio pela cidade com um amigo de infância. Ele mostrava-se fascinado com a estética: as ruas vazias, as estradas sem carros, os comércios fechados, o silêncio. Eu mostrava-me preocupado com a ética, e informava-o de que o intrigante cenário de “Twilight Zone” custaria caro, e seríamos nós a pagar. As cautelas, que decerto se justificavam nas famosíssimas duas primeiras semanas, talvez não se justificassem, com maiores ou menores “emergências” e “calamidades”, nas subsequentes 120. Por algum motivo, em cem anos o Ocidente sofrera dois conflitos mundiais e três epidemias similares ou maiores sem promover o colapso deliberado do sistema económico. À época, perante o risco havia estadistas empenhados em preservar o possível. Hoje, os “estadistas” que nos tocaram em sorte – leia-se que escolhemos – apressaram-se a destruir o inimaginável. Foram eles, e não a Covid, que arrasaram a economia.
E foram eles, com um orfeão de tontinhos a reboque, a jurar que a economia não merecia a perda de uma única vida. Suponho que os “estadistas” confundissem a economia com um curso universitário ou uma série de colóquios aborrecidos, e se esquecessem que, numa realidade alternativa à das pândegas financiadas pelos contribuintes, os contribuintes têm de comer. Não há grande sentido em tentar salvá-los da doença para os matar com a cura.
A chatice é o sentido não caber nesta história. Nem a lógica. Nem o bom senso. Não tivessem caído em desuso, tais minudências levariam a que os coveiros do buraco em que apenas começámos a cair estivessem a aguardar julgamento por crimes sortidos. Ou, no mínimo dos mínimos, pedissem desculpa e a demissão por motivos de incompetência terminal. Nem pensar: lá fora e cá dentro, continuam nos seus cargos, inchados de razão, a culpar a Covid por aquilo de que a Covid era incapaz, a culpar uma guerra que pelos vistos possui efeitos retroactivos, e a adicionar ao caldo a culpa das fatais “alterações climáticas”, que doravante ajudam a perpetuar o medo e a legitimar a miséria de todos excepto dos iluminados que se afligem com elas. Nos EUA, renovou-se há dias o estado de emergência para a pandemia que o sr. Biden declarou acabada em Setembro. Na Europa, a generalidade dos países mantém presente a ameaça dos “confinamentos” e das loucuras que calhar sob os pretextos que calhar. E em Portugal, coitadinhos de nós, “discutiu-se” um Orçamento que inaugura uma idade das trevas sem que algum partido admitisse o elefante na sala.
O elefante é enorme, tão grande quanto a cumplicidade dos partidos nas decisões que nos deixaram de rastos, a agradecer a devolução de 125€ de um saque desmesurado, e a tornar obsoleta, mediante cadeado, a abertura fácil das latas de atum. Se nos encontramos em descida acentuada rumo a uma pobreza sem nome devemo-lo, sobretudo, a políticos sem noção e políticas sem oposição, que assim resolveram, subscreveram e, na maioria das vezes, aplaudiram. Com entusiasmo, nos casos de PS, PSD e BE. Com receio de afugentar votos entre um povo mascarado, nos casos de Chega, IL e PCP. Todos participaram na demência. Salvo murmúrios erráticos, nenhum questionou a respectiva factura. Agora que vivemos de facto uma calamidade, os partidos debatem a situação sem beliscar a sua origem – como o BCE sobe juros não porque, cito uma frase com dois dias, “faz o que tem a fazer”, mas porque durante anos fez o que não devia ter feito, ou seja, sujeitar as impressoras a provas de esforço. As impressoras passaram com distinção. Nós não.
Repito, que as cabeças são duras e a amnésia galopante: por si, a Covid não causou nada que um microorganismo dispensável não tenda a causar. O resto, uma coisa aparentada com um suicídio colectivo, tem mão humana: é de autoria dos governos que o decretaram, com o aval dos tristes que o toleraram e dos zelotas, pagos ou voluntários, que o defenderam. Por cegueira ou desígnio, chegamos aqui por escolha política. E esconder o que nos trouxe até aqui nunca permitirá descobrirmos maneira de sair. Pior: para não beliscar ilusões, vamos aprimorar a receita do desastre fingindo que o combatemos. Entretanto ponha a máscara, estacione o automóvel, desligue o aquecedor, passe frio e passe fome. Em suma, obedeça aos políticos e proteja-se. O Inverno será longo.