Por mais que se queira evitar, e há boas razões para o fazer, é inevitável associar a tentativa de exterminar o povo judeu levada a cabo pelo nacional-socialismo e os acontecimentos no Médio Oriente. As relações históricas entre nazis e o mundo islâmico são antigas. Relembre-se, pela rama, que em Novembro de 1941 Hitler recebeu oficialmente o Grão-Mufti de Jerusalém, Mohammad Amin al-Husayni, que se refugiara na Alemanha, a fim de o levar a organizar uma revolta árabe contra os Aliados, auxiliando assim o esforço de guerra alemão. Resultou daí uma barragem de propaganda radiofónica e escrita que fundia o anti-semitismo nazi com o anti-semitismo árabe, além da criação de unidades muçulmanas das Waffen SS e dos muçulmanos que lutaram na Wehrmacht. Terminadas as hostilidades, al-Husayni tornou-se um dos dirigentes da Irmandade Muçulmana, um grupo radical egípcio de onde proveio o Hamas.
Depois da guerra, o livro de Hitler «A Minha Luta» foi amplamente difundido no mundo árabe, no Cairo, no Líbano ou na Síria, países onde se refugiaram criminosos de guerra nazis. Recorde-se ainda o caso de Alois Brunner, SS-Hauptsturmfùhrer, o braço direito de Adolf Eichmann, que, depois de passar pelo Egipto, se fixou na Síria, onde teve como profissão, bem paga, ensinar a interrogar e a torturar, actividade que recomendava para o mais pequeno delito e que ele mesmo exerceu, nomeadamente no campo de Drancy. Ou o caso de Joachim Deumling, SS-Obersturmbannführer, que, de 1954 a 1957, ajudou a organizar os serviços secretos do Egipto.
O que sucedeu depois do dia 7 de Outubro de 2023 é, no entanto, de outra ordem. Logo a seguir aos ataques, particularmente brutais e em grande escala, mesmo levando em conta que se trata do Hamas, o que se passou nas democracias ocidentais extravasou o habitual. Israel é culpada de todos os males que lhe acontecem. Se é atacada, é porque atacou; se é aterrorizada, é porque aterrorizou; se é invadida, é porque invadiu. O rol prossegue tanto quanto for preciso. O que poderia constituir motivo de inquietação é precisamente o novum destes acontecimentos. Dada a selvajaria do que se passou, poder-se-ia pensar que o ataque do Hamas impossibilitaria a repetição do velho argumentário; que seria posta a nu, sem apelação, a natureza terrorista do grupo e o fim que visa: a eliminação do estado de Israel e o extermínio do povo judeu. Sucedeu o contrário. A bárbarie acicatou ainda mais a culpabilização de Israel.
O Hamas, repetiu-se com indisfarçável satisfação, seria uma criação de Israel – estranho país que tem por objectivo principal da sua existência o seu suicídio. Manifestaram-se preocupações pela limpeza étnica que Israel poderá efectuar em Gaza, tal como já tinha realizado uma primeira em 1948, equiparando assim toda a acção histórica do Estado dos judeus à eterna repetição de um crime. Todo isso levou à descoberta de uma nova lei histórica: quanto maior o ataque a Israel, maior a sua culpabilidade. Está na natureza das coisas; rasuram-se os factos e todas as contingências históricas, para reter apenas a essência de Israel: o mal. Neste sentido, a lógica é perfeita: a magnitude do crime prova a dimensão do mal. Trata-se de um modo de pensar que sustentou não só o anti-semitismo tradicional como o actual – expele o mal para o bode expiatório e sente-se justificado.
Em algumas franjas sociais e em grupos minoritários das sociedades demo-liberais do Ocidente, tendencialmente da esquerda anti-capitalista, este anti-semitismo continuou a ser moeda corrente. A 7 de Outubro, no entanto, alguma coisa se alterou. Israel viu-se confrontado com manifestações públicas no Ocidente que, sendo minoritárias, são muito superiores em número de participantes face ao que acontecia no passado, mas com um respaldo institucional em partidos e movimentos que estão no governo dos seus países. Institucionalmente, as regras do jogo mudaram. Ainda mais grave, mas sintoma da mudança de época, foi o que terá sucedido na Universidade de Stanford, onde se segregaram fisicamente os alunos judeus para que eles compreendessem o que Israel impõe aos palestinianos. Já não é uma opinião, é discriminar publicamente os judeus impondo-lhes as mesmas práticas do anti-semitismo tradicional. Claro que o anti-semitismo tradicional não tinha em si nada que conduzisse por um automatismo à «solução final do problema judaico», porém, é à luz do que se passou nos anos das trevas que se lê a história; o sentido passado é-lhe dado pelo presente, é pelos problemas do presente que o passado tem um potencial de interpelação. Hoje, essas práticas discriminatórias, que precisamente superaram o interdito institucional da prática, conjugadas com o apelo ao gaseamento dos judeus, têm de ser entendidas nesse quadro histórico mais alargado; e, por essa razão, o que se passou vem ratificar retroactivamente – e desse modo absolvê-los – os crimes do nacional-socialismo, ao restabelecê-los numa continuidade histórica, que passa assim a ser uma repetição mítica. Compreende-se a História como o duelo com a essência do judeu: o mal. Com uma agravante. O anti-semitismo tradicional, incluindo nele o moderno anti-semtismo de massas do século XX, não sabia o que viria a acontecer. O anti-semitismo actual sabe muito bem o que aconteceu: a acusação do judeu tem hoje debaixo dos seus olhos a pena a que o quer condenar. E não vacila. A 7 de outubro, as placas tectónicas moveram-se. O mundo ficou pior.