A sociedade acomodada na desinformação vive em exercício permanente de Brainstorming sem conclusão, em que todos lançam hipóteses no ar, uma nuvem que carrega inutilmente o ambiente psíquico gerando-se o Logos do medo. Recupera-se o velho mecanismo da selecção natural que está aí ao rubro com a espécie humana a espezinhar-se entre si para sobreviver. O medo, emoção ancestral, que nos alertava para a eventualidade de ser comido a qualquer momento como mero elo da cadeia alimentar, é hoje canalizado aos outros e ao ambiente em geral, sentido como uma inquietação persistente por não ser perfeito, visto, reconhecido e amado.
O pânico instala-se face à não existência para os outros, um lugar de horror ao anonimato e ao silêncio onde todos querem fazer-se notar e ter poder. Esta é a sobrevivência de Darwin no mundo contemporâneo, o de desejo de suplantar-se na experiência de adaptação humana à realidade, em que só sobrevivem aqueles que mentem melhor.
Sente-se esta dinâmica mais evidente no show político, onde se recorre à fábula e ao exagero expressivo para influenciar audiências e captar naturalmente os votos – a mesma avidez por poder de outros a quem o país permitiu enriquecer ilicitamente e chegar ao estrelato. Outros que, receosos da falta de pão à sua descendência por várias gerações, sentiram legitimas as suas fraudes, corrupções e outras imoralidades que contribuíram para a actual decadência de Portugal.
A todos subjaz o sentimento heroico, notavelmente descrito por Ernest Becker (1924- 1974) no livro “The Denial of Death”. Segundo o autor a questão do heroico expressa abertamente o trágico destino do homem que tem de se justificar desesperadamente como objecto de valor primordial no universo. Tem de destacar-se, ser genial, tributo épico, ou mostrar que vale mais que qualquer outra pessoa ou coisa. Disfarça-se esta luta acumulando números na conta bancária para refletir o senso de valor, tendo também a melhor casa do bairro, um carro melhor que os vizinhos ou um cargo de relevo profissional. Por baixo de tudo isto pulsa o sentimento mesquinho de excepcionalidade cósmica por mais que se disfarce.
Precisamos de outra orgânica mental com esbatimento do Ego e do pecado da vaidade, especialmente no serviço público e na missão governativa onde é urgente a mudança de paradigma. Os novos tempos terão de afastar lideranças do estilo de CEO que a tudo responde. São necessários líderes que saibam integrar conhecimentos do colectivo e partilhem responsabilidades nas organizações de forma a favorecer a criação de riqueza na sociedade como um todo, única forma de diminuição da pobreza.
Em época pré-eleitoral, pouco ou nada de novo se observa nos projectos partidários concebidos tradicionalmente em jeito de resposta sintomática às doenças crónicas do país. Não vemos claramente sublinhado o desagravamento fiscal, nem a regulação do preço da energia e combustíveis, nem alívio da máquina burocrática que emperra o empreendedorismo e a competitividade. À esquerda a sensação de que os pobres são essenciais à sua lógica política, principal móbil do discurso, a quem mais importa dar o peixe do que ensinar a pescar. À direita excessivo espírito salvacionista no contexto descrente e martirizado com promessas políticas por cumprir.
O futuro político vai ser de quem tiver capacidade de síntese e saiba gerir o conhecimento técnico-científico dentro da natural instabilidade humana, uma posição flexível à imprevisibilidade, sempre de acordo com as soluções da democracia representativa. São improcedentes e antidemocráticos pedidos de convergência dos votos nos grandes partidos em nome de uma estabilidade política que se tem traduzido em períodos de paz podre, uma centralidade redundante onde vigora o governo da “Familiengesellschaften”, liderança do tipo “Sociedade Familiar” (expressão jurídica do Manual de governo das sociedades, Ana Perestrelo de Oliveira, 2017, 36) que valida o nepotismo das decisões governativas.
Precisamos de nos perceber assim como às circunstâncias que nos rodeiam. Em clima de desânimo face à incerteza do futuro, empobrecimento crescente e consequências da pandemia, a sociedade portuguesa tem de acordar e querer novas soluções. O “Realismo socialista”, modelo teórico estético de organização social, é ainda utopia das esquerdas actuais que padecem de positivismo heroico decadente e obsoleto.
Convém por isso um processo terapêutico, pois como referiu Karl Jaspers (1883-1969), só há cura depois de se perceber que a Existência é o naufrágio, para se chegar à experiência do gozo em estar vivo. A verdadeira condição do homem é a condição de náufrago. Chegados ao lugar de todas as perdas é necessário sobreviver aos afectos, à desordem da alma, perder a ilusão do mundo perfeito, que a vida demasiado ordenada também adoece. Paixão certa para razão certa.
Teremos de dispensar heróis, somos causa e culpa, explicação de tudo. Embora só o sentimento heroico afaste a depressão e a melancolia, quando aflora a consciência de que a qualquer momento tudo pode correr mal e acabar, percebemos que somos cada vez mais pequenos para o heroico e os momentos de melancolia fazem parte do homem consciente.
Se tem planos, metas ou objectivos, siga-os como farol, mas aceite que provavelmente vão falhar. Os obstáculos são essencialmente psíquicos e as pessoas de modo geral receiam perda de validade face aos avanços tecnológicos. A mesma sociedade que gera longevidade distancia as pessoas da “utilidade” com o avançar da idade. Caminhamos todos para “inúteis” devorados pelo marketing que nos molda e impõe boa forma física, boa performance profissional e familiar. E os jovens cada vez mais ansiosos, formatados e sem plasticidade neuronal, mantêm tempos de ecrã patológicos.
Este traço pessimista é a constatação do náufrago, herói sobrevivente que tem de reunir capacidades para sair da ilha rumo a uma nova hipótese de vida. O verdadeiro heroísmo, talvez seja uma réstia de sanidade, talvez apenas, a capacidade de construir a jangada.