De uma trincheira ninguém sai, nem ninguém entra. Não há contacto com o outro lado. Quem se atreve a pular na terra de ninguém é imediatamente metralhado com fogo cruzado. Rajadas de balas trespassam a atmosfera de quem foge da muralha de terra lamacenta. A trincheira confere, pois, a segurança de estarmos todos para o mesmo. O entrincheirado não corre o risco de dar de caras com algo estranho, enquanto percorre o seu terreno delimitado. A sua missão passa por defender aquela linha sulcada com a vida, se assim for necessário, e chacinar tudo o que esteja fora. O objetivo de um entrincheirado é esventrar qualquer conexão, qualquer pressão da parte inimiga. Nas trincheiras não há diplomacia, há uma guerra surda de proporções bem audíveis.
Bem recentemente, a sociedade portuguesa debateu-se com dois temas historicamente fraturantes. Por um lado, a questão da despenalização da eutanásia, promovida pela discussão e aprovação na generalidade de vários diplomas pela Assembleia da República. Por outro, e mais recentemente ainda, a questão da interrupção voluntária da gravidez, por força da decisão do Supremo Tribunal dos EUA de reverter um precedente judicial que garantia este direito em todos os Estados americanos.
Que fique claro: nas duas questões sou inequivocamente a favor da sua despenalização. Sou-o porque, numa primeira linha, considero-as questões de liberdade individual que não perturbam qualquer putativo direito fundamental de outrem ou do próprio cidadão; e, numa segunda linha, porque defendo que os resultados dessas ações não colocam em causa a ordem de valores que guiam a nossa comunidade, isto é, a cola que cimenta o coletivo e que possibilita que caminhemos lado a lado, sem destronar o Homem social pelo Homem natural, inevitavelmente bruto, dotado à sua sorte e sem capacidade alguma de escapar a uma vida miserável e lúgubre.
Afirmada sumária e resumidamente a minha posição (as suas ramificações dariam para um texto autónomo, é certo), chega a hora de sair da trincheira. Galgo com estas palavras a terra sempre húmida protegida pelos meus camaradas progressistas, assento na terra de ninguém e olho para o outro lado. E daqui grito para quem da outra ala estiver disposto a ouvir: eu sou sensível ao que dizem. Não vos dou razão nem escuto aqueles que também rebolam entusiasticamente na terra insalubre da vossa trincheira. Mas ouço-vos, quero ler-vos, sou sensível às vossas preocupações e à vossa argumentação. Não vos considero beatos energúmenos e autoritários apenas por pensarem de modo diferente, por idealizarem uma relação entre o indivíduo e a comunidade distinta da que eu idealizo. Basta respeitarem nos vossos raciocínios os mesmos princípios elementares de dignidade, liberdade e igualdade que eu respeito para merecerem a minha total atenção.
E é neste ponto que todo o paradigma da trincheira se revela. Nas minhas costas disparam-se acusações de traição, à minha frente avista-se um alvo isolado fácil. Os que escaparam da trincheira oposta experimentam exatamente a mesma sensação. Voam argumentos simplistas em redes digitais, impropérios contra a pessoa, adjetivações ofensivas e, quando olhamos à volta, o contacto perdeu-se, a discussão verdadeiramente já não o é, as lógicas de debate jazem abatidas permanentemente num qualquer buraco de artilharia, onde também repousa o respeito pelo outro.
Como progressista, não compreendo como e quando os meus pares decidiram cimentar este paradigma autoritário, ignorando a falésia de ignorância que ele encerra. Não considero ser normal para um progressista não ler nem ouvir os que nos opõem, rejeitá-los veementemente, com desprezo e fúria, atolar-nos nas nossas próprias ideias recicladas na boca de outro. Sem a sensibilidade de não demonizar o lado contrário e de compreender que os outros não são desprezíveis só por encararem a dialética entre o indivíduo e a comunidade de forma diferente, vamos perdendo qualidade de raciocínio e argumentação dos dois lados, porque cada um vicia-se em escutar apenas aquilo com que vai concordar. Não há estímulo, só dormência do intelecto. Não há qualquer tentativa de convencer, há antes a clara intenção de fragmentar.
Sim, defendo convictamente a despenalização da interrupção voluntária da gravidez e da morte medicamente assistida. Mas sim, sou sensível quando levantam a preocupação da rampa deslizante com a regulamentação da morte, da necessidade de estabelecimento de um quadro de proteção jurídica dos nascituros ou do perigo da banalização da morte nos tempos da técnica, da eficiência e da utilidade. Sou genuinamente sensível a elas, fazem-me pensar, questionar continuamente a minha posição, fortalecendo-a simultaneamente. Serei um progressista perigosamente sensível para compartilhar trincheira com aqueles que, de dentes cerrados e jugular saliente, atolam qualquer discussão com ataques ad hominem e desinteressam-se pelo que efetivamente é defendido pela outra parte? Talvez, mas acredito convictamente que é nesse plano que qualquer debate é ganho, que aí somos capazes de avançar enquanto comunidade e de nos afastar da intolerância das trincheiras. E é aí que continuarei a combater, como progressista perigosamente sensível, vislumbrando desconsolado a minha ala a ceder para o facilitismo do cancelamento e do desprezo por quem, apesar de cumprir as regras da decência, apenas encontra indecentes contrários pela frente.