É curioso que, no dia em que escrevo estas linhas, depois de milhares de anos de evolução, da catadupa de conquistas tecnológicas absolutamente fantásticas e de uma caminhada, enquanto espécie, que nos faz afastar progressivamente da nossa origem, continuamos absurdamente dependentes desta nossa primeira invenção, gatilho de todas as outras. A linguagem que compõe estas linhas, enquanto código constituído por termos representativos de conceitos gerais e abstratos, continua a manifestar-se enquanto digna representante da nossa habilidade de criar, de racionalizar, de não nos entregarmos apenas ao que vemos, cheiramos, escutamos, ouvimos e sentimos, mas para que possamos ter uma outra dimensão percetiva.

Milénios passados, continuamos dependentes da linguagem para o entendimento. Ainda não alcançámos nenhum método que permita a receção de um determinado conceito geral e abstrato por parte do outro sem recorrermos a uma representação desse conceito. Ainda não somos capazes de conectar as mentes e transmitir a clareza da nossa ideia, sem mais. Não tendo outro recurso tão eficaz, a linguagem é a fiel companheira da evolução humana, da construção e harmonia das civilizações, a trave-mestra de qualquer sistema.

Para que possa existir contacto, a linguagem tem de se manter límpida, coerente e adequada ao seu fim, sob pena de nada servir. Para compreender bem esta necessidade, pensemos na seguinte afirmação: “Eu sou loiro.”. Quem receber esta linha de linguagem, construirá imediatamente uma figura que lhe foi sugerida pelo termo “loiro”, mesmo que nunca tenha visto o agente que a enunciou – uma pessoa com o cabelo de cor de ouro. Imaginemos, agora, que numa determinada comunidade, virou moda ser loiro e, por isso mesmo, todo o indivíduo se afirma loiro, sendo grisalho, moreno ou até careca. Naturalmente que, nessa comunidade, o termo “loiro” perdeu o seu conceito e, como tal, ninguém sabe muito bem o que é ser loiro, uma vez que o termo significa tudo e o seu contrário. A utilização indiscriminada da terminologia parece simplificar e até ajudar quem a utiliza, porque enquadra-se no conceito desejado, mas, na verdade, o que provoca é uma comunidade que não se entende e dificilmente tem como reconquistar a pureza dos conceitos.

O que se afirmou nestes parágrafos é particularmente relevante para a política. Quando alguém ou um grupo de alguns se afirmam como sendo isto ou aquilo, para o resto da comunidade é importante compreender o que aquele termo, que adjetiva politicamente o indivíduo ou o coletivo de indivíduos organizados, significa. Particularmente relevante se torna, no caso de estarmos a considerar democracias representativas, em que a generalidade dos indivíduos entrega a sua participação política ativa a um grupo de eleitos que ficam responsabilizados a seguir determinadas linhas orientadoras políticas com as quais se comprometeram perante o eleitorado. Só com a limpidez dos conceitos é que é possível uma democracia representativa e pluralista, pois, caso contrário, os mandatos que são entregues aos representantes políticos são autênticos cheques em branco, sujeitos a serem completados mediante a utilidade do seu conteúdo em determinada situação.

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Os tempos que vivemos parecem negligenciar esta necessidade. Por razões de simplicidade, tendemos a ver um terreno bipolar, onde os termos são comummente utilizados, já não para representar conceitos distintos percetíveis pelo recetor, mas como representantes de polos opostos, capazes de incorporar no seu seio todas as várias figuras potencialmente presentes num determinado lado. Mais do que a representação de conceitos perfeitamente compreensíveis, os termos na política ganharam a missão de exporem a fragmentação do campo social. Como tal, aquilo que era uma pluralidade de projetos políticos, passa a enquadrar-se apenas em dois caminhos que tendem progressivamente a extremarem-se para revelarem precisamente a sua diferença.

Olhemos para a direita portuguesa. Visitando a página oficial do CHEGA, é possível encontrar o seu programa político, no qual, no seu Capítulo III, o partido se afirma conservador. No próprio parágrafo onde o partido define essa sua matriz, é citado o filósofo irlandês Edmund Burke, lendo-se que “A sociedade é de facto um contrato (…) entre os que estão vivos, os que estão mortos e os que estão por nascer”. Uma declaração perfeitamente representativa da perspetiva legítima de um conservador clássico, para quem a sociedade e a sua ordem constitucional são construções baseadas na história da comunidade, sem recurso a uma qualquer abstração e disrupção perante a ordem vigente, garantindo a permanência e estabilidade das instituições. Assim, e como em qualquer contrato, para que este postulado conservador se confirme, a sociedade tem de ser vista como um conjunto de vontades divergentes expressas, que influenciam os termos contratuais, alcançando a base de convergência que se plasma nesse contrato. Por isso, manda a lógica que, para um conservador, princípios como o pluralismo e o parlamentarismo sejam encarados como fundamentais e que não haja lugar a disrupções da ordem constitucional estabelecida, por os mesmos serem o garante processual de alcance e conservação desse contrato.

Feita esta descrição do conceito de conservador, é possível compreender que o CHEGA não partilha desta matriz que formalmente consagra no seu programa político. Até pode ser um partido que rejeita avanços no campo dos costumes e se identifica com experiências históricas nacionais autocráticas marcadas, também elas, por essa mesma linha de conservadorismo dos costumes. Mas defender apenas isto é manifestamente insuficiente para que o partido possa ser representado pelo termo conservador perfilhado por aqueles que encaram a democracia, o pluralismo, o parlamentarismo e a ordem constitucional como requisitos lógicos fundamentais do seu conceito político.

O CHEGA não pode, pois, ser considerado na mesma família política conservadora que baseia o seu programa no conceito descrito. E não o pode ser, porque na mesma página oficial, no seu manifesto político, é possível ler que “O CHEGA não é o colete de salvação da III República. Pelo contrário o CHEGA trás [sic], consigo, a IV República, tutelando uma Nação assente numa Constituição ideologicamente neutra, no primado de um Estado de Direito forte assente sobre o império da Lei e inflexível na exigência da limitação e separação de poderes e, por fim mas não em último, no fim da ditadura dos grupos de interesse, das elites, das minorias e da sua impunidade, tudo aquilo até onde nos trouxe a III República.”

Destas palavras, percebe-se que o CHEGA não aceita o regime atual e reivindica outro, colocando-se de fora da ordem vigente. Repare-se que o que está em causa não é uma revisão constitucional (ela seria possível, tendo até em conta o que o próprio parágrafo refere como objetivos da nova ordem, não extravasando estes as limitações materiais da constituição portuguesa de 1976 e, como tal, não dando origem a uma disrupção constitucional onde se iniciaria uma IV República). O que o CHEGA defende é uma total rutura com a ordem instalada, iniciando uma nova República. Lendo os documentos do partido não é possível perceber o que quer exatamente nessa mesma ordem. Mas, por lógica de contraposição e lendo as entrelinhas do emaranhado contraditório, podemos perceber o que não querem: não querem uma ordem democrática baseada no pluralismo e no parlamentarismo. Não querem o reconhecimento do princípio da solidariedade como fundante para uma sociedade justa e igual. Não querem ser conservadores, a menos que se ignore a pureza desse conceito político e que ser conservador seja apenas defender ideias e respostas político-sociais cronologicamente antigas ou encarar saudosamente realidades políticas de outros tempos.

O que o CHEGA é e o que quer ser até podemos não saber, mas é possível saber o que o CHEGA não é. E para o bem do pluralismo democrático português, é fundamental esclarecer que não é conservador na medida em que os partidos que ocupam esse espaço o são. E convém serem os próprios conservadores a apressarem-se com essa tarefa de limpidez do conceito, sob pena de serem continuamente limitados na sua agenda por quem, de forma populista e oportunista, reivindica aquele espaço para si.