No meu artigo anterior, publicado no Observador, sobre “O Futuro do SNS” descrevi de forma pormenorizada os graves problemas que afectam o nosso Serviço Nacional de Saúde, que são estruturais, pré-existentes à pandemia e que serão agravados por ela, e que se caracterizam, em termos sintéticos e substantivos, por:

  • Cerca de 40% da população procura de forma generalizada, pagando, através de seguros de saúde privados e de subsistemas públicos como a ADSE, o sector privado da saúde por falta de resposta do SNS;
  • Listas de espera para cirurgias e consultas constantes e elevadas, problema nunca resolvido pelo SNS ao longo da sua existência (em relação às cirurgias, 192.491 pessoas em espera em 2015 e  252.510 em 2019 ) e que penalizam, em especial, as camadas da população mais vulneráveis e desprotegidas (as pessoas que o podem fazer, afastam este risco de espera através do recurso ao sector privado);
  • Relevante parte da população sem médico de família, problema este também nunca resolvido pelo SNS (situação antes da pandemia: 690.232 pessoas no final de 2018 e 730.332 no final de 2019);
  • Elevada ineficiência do SNS apesar de, na prática, responder apenas a cerca de 60% da população, conduzindo a custos muito superiores àqueles que seriam necessários para prestar os mesmos cuidados de saúde;
  • Falhas graves de organização e gestão traduzidas, no essencial,  por:

  . Inexistência ou fraca ligação entre os meios financeiros atribuídos pelo Orçamento do Estado às unidades prestadoras do SNS e os resultados obtidos para a população;

. Gestão burocrática, sem reconhecimento e recompensa do desempenho individual, com influência política em especial na nomeação de quadros superiores e equipas dirigentes, não orientada para resultados;

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. Falta de autonomia, em especial, nas unidades hospitalares, conduzindo à desresponsabilização das equipas de direcção no cumprimento de objectivos, o que foi agravado nos últimos anos pelas cativações impostas pelo Ministério da Finanças;

. Inexistência de uma cultura de meritocracia e de estímulo ao envolvimento dos profissionais;

. Mecanismos de gestão insuficientes e ineficazes, como o planeamento das actividades (como foi demonstrado no combate à pandemia) ou inexistentes, como o planeamento estratégico.

Referi também neste artigo, justificando, que no âmbito do actual “Modelo”, a resposta do SNS às necessidades da população continuará a degradar-se, penalizando e mantendo em especial uma situação discriminatória em relação à população mais vulnerável e desprotegida (que não tem meios para aceder a seguros de saúde privados) se não forem introduzidas mudanças estruturais que concretizem a evolução para um novo “Modelo” do SNS.

Este novo “Modelo” do SNS que proponho assenta nos seguintes pilares:

  1. Evolução do conceito de SNS – Serviço Nacional de Saúde para Sistema Nacional de Saúde, doravante denominado de Sistema de Saúde (SS);
  2. Coexistência, de forma articulada e institucional, no âmbito do SS da presença de prestadores públicos, privados e sociais;
  3. Contratualização pelo Estado da prestação de cuidados de saúde a prestar à população, às iniciativas privada e social;
  4. Liberdade de escolha dos utentes;
  5. Ligação entre financiamento e resultados nas unidades prestadoras, públicas, no SS;
  6. Introdução de alterações estruturais na organização da componente pública do SS e na gestão das suas unidades, com modificações na gestão dos seus recursos humanos.

Nos pilares referidos em 1) 2) e 3), a criação do SS com coexistência das três iniciativas – pública, privada e social – será concretizada pela contratualização pelo Estado dos cuidados de saúde às outras iniciativas.

A contratualização com as iniciativas privada e social é um instrumento fundamental para obter uma melhor resposta na prestação de cuidados de saúde à população, com menores custos face à situação actual, dado que:

  • Na contratualização, o Estado pode impor objectivos a atingir às outras iniciativas, pagando apenas por resultados obtidos para a população (de qualidade, de custos, de prestação atempada dos cuidados – eliminando listas de espera –  de atendimento, etc.);
  • O Estado pode criar mecanismos de concorrência a favor do utente, que estimulem o desempenho e aumentem a eficiência, quer na selecção das entidades privadas e sociais (quando do lançamento dos concursos para a contratação), quer na divulgação pública, sistemática, dos resultados atingidos (clínicos, de custos, etc.), fazendo a comparação (benchmarking) entre as iniciativas privadas e sociais e entre elas e a iniciativa pública.

Nos cuidados hospitalares, o novo “Modelo” do SS aprofundará a existência de hospitais em PPP, alargando o número destas unidades, cujos bons resultados obtidos, em termos de menores custos e  de qualidade e de satisfação dos utentes, estão certificados por entidades credíveis e oficiais como o Tribunal de Contas, a ERS-Entidade Reguladora da Saúde e o próprio Ministério das Finanças através do seu organismo: a UTAP – Unidade Técnica de Avaliação de Projectos.

Nos cuidados primários o objectivo é o de alargar o número de USF – Unidades de Saúde Familiares, nas quais, já hoje, o Estado (através do Ministério da Saúde) contratualiza a prestação de cuidados à população, com equipes de profissionais de saúde. Este aumento do número de USF’s terá que ser acompanhado por uma exigente avaliação e controlo, garantindo que as remunerações pagas aos profissionais reflectem a “performance” e o cumprimento dos resultados contratualizados.

Neste âmbito dos cuidados primários, seriam também criadas novas USF’s – as de tipo C – já hoje previstas na legislação existente, mas que o actual Governo nunca quis implementar – e que permitem a contratualização de cuidados de saúde também com entidades privadas e sociais.

O pilar atrás referido na alínea 4) – a liberdade de escolha dos utentes – que é fundamental, se efectivamente implementado, defronta no “Modelo” actual do SNS, o grande obstáculo de à oferta (por ex. hospitalar) não lhe ser permitido adaptar-se a variações da procura.

No “Modelo” proposto,  na componente pública do SS, e em resultado da liberdade de escolha dos utentes, existirá a flexibilidade de aumento da oferta nas unidades procuradas e diminuição/encerramento, de forma controlada, gradual e justificada, das unidades preteridas pelos utentes, introduzindo-se, assim, concorrência a favor do utente entre as unidades prestadoras públicas e criando estímulos para um melhor desempenho e resposta às necessidades da população.

No novo “Modelo” do SS que proponho, estando assegurada no caso da prestação de cuidados à população pelas iniciativas privada e social, pela contratualização, a ligação entre financiamento e resultados, há que garantir de igual modo essa ligação efectiva nas unidades prestadoras públicas.

Nesse sentido, o financiamento destas unidades públicas dependerá dos resultados a atingir para a população (resposta rápida, atendimento, custos, etc.) e serão também contratualizados.

Esta contratualização seria efectuada entre elas e um novo organismo/instituto público a criar, com a nomeação de um CEO responsável perante o máximo decisor político – o ministro(a) da Saúde -, o qual teria garantias de independência técnica e operacional espelhadas na legislação.

A criação deste novo instituto (que imporia a redefinição da macroestrutura hoje existente na área da Saúde) e a nomeação de um CEO assegurariam, de forma permanente, competente e focalizada, a gestão operacional global do SS, o que teria ainda a vantagem de concentrar/focalizar a atenção do ministro(a) na área das políticas de Saúde a desenvolver, em especial, na parte não curativa do SS, ou seja, na promoção da Saúde e prevenção de doenças, contribuindo fortemente para que exista um Ministério da Saúde e não um “ministério que trata fundamentalmente das doenças” como hoje se verifica.

Neste novo enquadramento institucional seria fundamental, também, garantir os seguintes aspectos críticos na gestão das unidades prestadoras da componente pública do SS e na gestão dos seus recursos humanos:

  • Os orçamentos das unidades prestadoras seriam efectivamente negociados em termos de objectivos a atingir (resposta atempada à população, custos, etc.) e não seriam modificados, a não ser em situações excepcionais devidamente comprovadas e explicadas às equipas de direcção, dando origem, nestes casos, a novos orçamentos contratualizados e negociados;
  • Seria assegurada a autonomia das equipas de direcção, no âmbito dos orçamentos aprovados, em termos de decisões quanto aos recursos que gerem, salvaguardando-se, deste modo, a sua responsabilidade por resultados;
  • Seriam criados incentivos e penalizações ligados a resultados e ao desempenho individual;
  • Seria garantida a avaliação efectiva, regular, do desempenho das unidades e dos profissionais de saúde, como instrumento essencial de feedback para a sua evolução/recompensa;

O novo “Modelo” que proponho para o SS concretiza uma evolução cuja implementação pode e deve ser realizada de forma prática, gradual, isto é, com uma postura reformista.

Trata-se de uma evolução, mas não na continuidade, com rupturas significativas, estruturais, viáveis (dependendo, obviamente, da vontade política), as quais, se levadas à prática, poderão responder às necessidades dos Portugueses e superar os problemas de fundo hoje existentes, os quais não desaparecerão se continuarmos com o “Modelo” actual do SNS sem alterações estruturais. De facto, e parafraseando um cientista célebre, “não se podem obter resultados diferentes, actuando da mesma forma”.

Este novo “Modelo” que proponho, como sublinhei, não tem qualquer impacto/diminuição dos direitos dos utentes, que continuarão a aceder, como hoje, ao SS, de forma geral, universal e (tendencialmente) gratuita e tem ainda como resultado que o Estado, através da melhoria da eficiência na componente pública do SS e da contratualização com as iniciativas privada e social,  possa assegurar melhores cuidados de saúde aos Portugueses com menores custos (como foi demonstrado no caso dos hospitais em PPP).

Nesta reforma, o Estado tem que continuar a garantir à população a prestação de cuidados de saúde, de forma geral, universal e gratuita, mas não tem que ser o único prestador desses cuidados, ou seja, a reforma do SS deve estar centrada na população, nos utentes, e não na natureza dos prestadores (se são públicos, privados ou sociais). A dicotomia público/privado não é importante, mas sim a procura de soluções que resolvam, de facto e na prática, os problemas de saúde dos Portugueses.

Nesta minha posição sobre o SS não surge a palavra “investimento” e o motivo não é por negar que o investimento na Saúde é uma variável crítica, fundamental, para o desempenho e resposta do SNS.

É evidente que é necessário e indispensável investir na Saúde e que a degradação da resposta do SNS se deve, também, à falta de investimento que se agravou, com este Governo, nos últimos cinco anos.

Contudo, o investimento na Saúde não resolve, por si, os problemas do SNS, por três razões:

  1. A elevada ineficiência do SNS conduz, inexoravelmente, a que, quanto mais elevado é o investimento, maior é o desperdício nos recursos financeiros injectados no sistema;
  2. A questão fundamental do SNS não é só o investimento – de que necessita, de facto –, mas a criação de condições estruturais, permanentes, para que o SNS responda às necessidades da população em termos de melhor e mais rápida resposta com menores custos.
  3. A exigência de maior investimento no SNS que, repito, é essencial, é isso mesmo, a exigência de execução de uma variável critica, sempre fundamental, mas que não é uma estratégia para modificar estruturalmente o SNS.