A liberdade de voto é um termo pomposo, charmoso, apelativo e cativante, que esporadicamente se atribui aos Deputados na Assembleia da República (AR). Uma prerrogativa que se lhes reconhece e que apenas é notícia quando a matéria que vai a votação é particularmente sensível.

A Lei desta semana foi particularmente sensível. Os Deputados da AR apresentaram e aprovaram uma Lei sobre a Morte. Porém, antes de reflectir sobre liberdade de voto, permita-me expressar a minha posição pessoal sobre a Eutanásia:

Eu sou médico, daqueles inscritos na Ordem dos Médicos em Portugal, daqueles que no ano de formatura fazem um juramento onde prometem solenemente, livremente e sob honra pessoal que guardarão “respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início”. Gostaria de assinalar que esse texto formulado em Genebra em 1983, é baseado na Hipocratis Opera Vera et Adscripta de 1771, onde se jura que “mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei.” Convém ainda recordar que Hipócrates viveu muito antes de 1771, mais precisamente nos séculos IV e V a.C. Ora, se estas menções têm milénios é porque estas questões também o têm e porque em todos os momentos da História da Humanidade se tomaram posições perante as complexas questões éticas. Eu pertenço à Escola de Hipócrates, dos que ofereceram uma abordagem científica à Medicina e colocam a Vida Humana acima de tudo. E procurarei sempre honrar a minha palavra, no cumprimento do Código Deontológico da minha Ordem Profissional.

Sobre a liberdade de voto, diria que é bonito associar estas duas palavras. Transmite uma ideia de suprema pureza democrática.

Para mim, porém, é um embuste, quando vivemos num regime de democracia representativa.

Ainda por cima num país cujo sistema democrático não permite círculos uninominais, apenas Deputados eleitos em listas distritais (ou regionais para os Açores e Madeira) que só podem ser apresentadas por partidos políticos, que sufragam um específico programa eleitoral.

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O Deputado não foi eleito para votar como entender, mas sim para cumprir um mandato que lhe foi confiado pelo povo. Se porventura o tema a votação não constava explicitamente no programa eleitoral do partido político (ou coligação) pelo qual foi eleito, e sobretudo se esse tema é uma proposta de Lei “sensível” e levanta questões éticas importantes, o Deputado dispõe semanalmente de um dia para se inteirar da vontade do povo do Distrito que representa.

A liberdade de voto, mais que um lavar de mãos como Pilatos, é um acto de cobardia política. É o momento em que um líder de um partido político assume publicamente que o seu partido não toma partido. E esta cobardia é particularmente agravada quando tratamos de questões éticas e se decide legislar sobre a Morte.

É uma contradição, rejeitar círculos uninominais e ao mesmo tempo dar liberdade de voto aos Deputados da sua bancada.

É outra contradição, recusar um instrumento de democracia directa como é o referendo e legitimar a liberdade de voto numa bancada parlamentar. A que propósito é que a opinião pessoal de 230 cidadãos vale mais que a opinião pessoal de todos os outros milhões de cidadãos com possibilidade de voto?

(e isto numas eleições com uma taxa de votantes de 51,42%, com 2,63% de votos brancos e nulos).

Eu não consigo vislumbrar a democracia representativa neste processo obstinado da Lei da Eutanásia, porque ela não consta no programa eleitoral do partido político que a promoveu. Na página 21 do programa eleitoral do Partido Socialista (PS), encontramos o tema: “Recuperação da autonomia e apoio à doença grave ou incurável” – Alargar as respostas em cuidados continuados integrados e paliativos. Em nenhuma dessas linhas se encontra uma proposta de Lei para a Eutanásia. O PS não estava mandatado pelo povo para fazer o que fez. E se entende que estava, então é porque para o PS, um programa eleitoral não tem valor.

O expediente dos “lugares elegíveis” no momento da configuração das listas eleitorais é outra manobra que descredibiliza um sistema de democracia representativa por Distritos. Todos conhecemos Deputados eleitos sucessivamente em Distritos diferentes, onde nunca residiram, trabalharam nem têm qualquer relação familiar ou social. Provavelmente vão-me dizer que “os Deputados representam todo o país e não apenas os cidadãos do círculo eleitoral pelo qual foram eleitos”. Ora isso não reforça a credibilidade deste sistema de democracia representativa por círculos distritais e regionais. Reforça sim o receio que o nosso sistema eleitoral sirva para permitir o acesso a cargos de poder, que depois são exercidos de costas voltadas para os cidadãos que os elegeram.

O nosso regime democrático é um sistema de democracia representativa que dispõe de Juntas de Freguesia, Assembleias de Freguesia, Câmaras Municipais, Assembleias Municipais, Assembleias Regionais nas Regiões Autónomas, Assembleia da República, Presidência da República (e Parlamento Europeu). Todas estas instituições existem por mandato do povo que os elege.

Fala-se muito (e bem) das incompatibilidades no exercício de cargos públicos. Curiosamente não se fala das situações em que um cidadão eleito para Presidente de uma Junta de Freguesia ou Vereador de uma Câmara Municipal, é também eleito para Deputado na AR ou no Parlamento Europeu. Das duas uma: ou um desses cargos é desnecessário, ou então a democracia representativa não está a ser cumprida. Na minha opinião, um cidadão que reiteradamente se candidata a um cargo de eleição pública, enquanto exerce outro cargo de eleição pública prévia, salvo oportunas excepções devidamente justificadas e aceitáveis (por vezes até desejáveis), demonstra desrespeito e desprezo pelos cidadãos que nele votaram e pelos cargos que ocupa.

Fala-se pouco (e mal) do dia semanal que o Deputado dispõe para visitar o “seu” Distrito. Será que o Presidente da Assembleia da República tem a preocupação de registar o que é produzido nas deslocações dos Deputados aos Distritos, ou será que à segunda figura da Nação apenas compete verificar quilómetros? E será que os eleitores poderão ter acesso ao que os Deputados produzem quando visitam os “seus” Distritos?

Eu defendo um sistema de democracia representativa com círculos uninominais de Deputados e a possibilidade de instrumentos de democracia directa. Por isso acredito e defendo o sistema democrático português vigente, que permite tudo isto. Se todos os cargos que dispomos e elegemos por sufrágio universal (acima citados) forem honrados, poderemos afirmar que temos um sistema maduro de democracia representativa.

A tradição histórica da organização administrativa de Portugal é municipalista, tão bem vincada no reinado de D. Manuel I. A divisão administrativa em Distritos é recente, criada no século XIX, na ressaca das invasões francesas e da Guerra Civil.

Fomente-se a cidadania e o debate de ideias opostas. Valorize-se e torne-se consequente a participação cívica nas Assembleias de Freguesia e nas Assembleias Municipais. Valorize-se a Presidência de uma Junta de Freguesia e a Vereação de um Município. Exija-se a presença do Deputado da AR nessas Assembleias junto do povo que o Deputado representa. E verifique-se que ele lá esteve e o que levou para S. Bento.

Promova-se a aproximação dos cidadãos com os seus representantes políticos através das instituições e instrumentos que já dispomos. Acredito que se assim o fizermos e sobretudo se nós cidadãos formos exigentes com os nossos representantes políticos e exercermos os nossos deveres cívicos na sua plenitude, chegaremos à conclusão que não precisamos de uma regionalização, porque essa sim, irá criar cargos de poder não eleitos pelo povo.