Desde o século XIX, com Clausewitz, que a guerra é compreendida como uma extensão da política. Com décadas de paz no velho continente, devidamente assegurada pelos Estados Unidos, cujo militarismo sempre nos pareceu exagerado e paranoico, os europeus esqueceram-se das velhas lições do general prussiano e permitiram que as suas forças armadas se tornassem pouco mais do que agências de protocolo republicano.
Entretanto, no outro extremo da Europa, Putin nunca esqueceu essa lição de Clausewitz, embora aparentemente não tenha aprendido todas as outras que a famosa obra também refere (logística, organização, preparação, etc.). Para regimes especialmente corruptos, as forças armadas juntam várias características profundamente atrativas: investimentos gigantescos dos quais é fácil desviar uma parte; secretismo negocial e contratual, o que torna qualquer escrutínio extremamente difícil; gastos em armas que provavelmente não serão testadas em combate durante décadas. Só para termos noção das prioridades e actual estado do regime russo, note-se o luxuoso iate de Putin, o Scheherazade, avaliado em 700 milhões de dólares, sensivelmente o mesmo preço que o navio almirante da frota do Mar Negro, o Moskva, que os ucranianos alegremente afundaram em abril de 2022.
Um outro efeito da corrupção endémica é o de que toda a informação que chega ao topo está também ela devidamente corrompida. Os milhares de tanques contabilizam carros abandonados há décadas, sem motores, armamento, miras, computadores, etc. O mesmo acontece com camiões, artilharia, veículos todo-o-terreno, entre outros, cujos pneus estão destruídos, os principais sistemas estão inutilizados e as munições fora do prazo. A corrupção também garante que os soldados russos não têm treino adequado, roupas apropriadas e informação clara, resultando em acrescida indisciplina, pilhagens e violações. Muitos dos terríveis crimes cometidos parecem ser resultado de meras decisões locais e total ausência de comando e estratégia. Não há qualquer método em toda esta loucura.
Assim, a operação especial de três dias tornou-se numa guerra que já vai em um ano sem qualquer luz ao fundo do túnel. Aos soldados russos, que se preparavam para fazer uma parada em Kyiv debaixo de uma chuva de flores, esperou-os uma resistência aguerrida e uma guerra como já ninguém julgava ser possível. As baixas russas já terão ultrapassado os 200.000, dez vezes mais do que a ocupação do Afeganistão pela URSS durante uma década. Se o desgaste da guerra no Afeganistão conseguiu ruir o império soviético, uma derrota na Ucrânia deixará certamente o regime de Putin muito frágil.
Não admira por isso que a pretensa democracia russa se tenha assumido rapidamente como uma ditadura totalitária. Quaisquer aspirações de parecer uma democracia ocidental ou de, pelo menos, estar a caminhar nesse sentido, desapareceram subitamente e somente as mais desagradáveis figuras políticas ocidentais (como Trump, Orban, Bolsonaro ou Lula) mostram qualquer tipo de complacência com Putin.
Entretanto, o tirano vai redobrando esforços para conseguir ganhar a guerra. Mais e mais homens, cada vez mais velhos, menos preparados e mais urbanos vão sendo conscritos. O uso de mercenários e prisioneiros vai permitindo alimentar a máquina com carne para canhão, mas até esse filão parece estar a esgotar-se.
Desde o primeiro dia da invasão que noto algumas parecenças com a Guerra de Inverno de 1939/40, quando a URSS invadiu a Finlândia. Então, a brilhante defesa dos nórdicos liderados por Mannerheim causou baixas terríveis aos soviéticos e permitiu-lhes capturar enormes quantidades de material, incluindo tanques e aviões. Mas as sucessivas vagas humanas e uma quase infinita capacidade de lançar novas divisões por parte dos comunistas forçaram os finlandeses ao que ficou conhecido como a “paz branca”, onde eles inevitavelmente cederam partes consideráveis do seu território. Relembro este evento porque não é pelo facto de os ucranianos estarem a lutar de forma brava e surpreendente que temos qualquer garantia da sua vitória. Tal como os finlandeses contra os soviéticos em 1939/40, ou os gregos contra os nazis em 1941, sem ajuda externa decisiva é uma questão de tempo até a avalanche humana e material russa prevalecer.
É, por isso, importante que Portugal e o Ocidente compreendam que a luta dos ucranianos é uma luta pela liberdade de todos nós. E que a ajuda seja cada vez maior, mais organizada e mais letal. Os países europeus devem-se preparar para o impensável. Quanto mais forte for a Ucrânia e a Europa, melhores serão as nossas probabilidades de pôr termo a este conflito e evitar uma guerra mais alargada.
Tal como aconteceu com os tanques Leopard 2, espero que Portugal se junte ao primeiro grupo de doadores de F16. As hesitações das grandes potências (Alemanha e Estados Unidos) foi ultrapassada pela quantidade de países que se coligaram e ofereceram os seus tanques. Os três Leopard 2 que Portugal entregará à Ucrânia serão certamente úteis, mas o empurrão político que os pequenos países europeus fizeram foi ainda mais importante. Poderá também disponibilizar a capacidade que tem de manutenção e treino nos F16, que é considerável e provavelmente ainda mais relevante do que os poucos aviões que conseguirá providenciar.
A Rússia está a falhar. As suas forças armadas estão a falhar. A sua moral está a falhar. A sua economia está a falhar. Portugal pode ser pequeno, mas pode bem fazer a sua parte, utilizando as suas forças naturais e as suas indústrias mais maduras (como os têxteis, enlatados, logística, etc.) para contribuir para o esforço dos que lutam pela liberdade, enquanto fortalece a sua própria posição para um futuro que ainda é extremamente incerto.
Acreditemos no povo português. Asseguraram-nos que os portugueses se cansariam da guerra. Que quando os preços do petróleo e do gás aumentassem, ninguém aceitaria sacrifícios em nome dos ucranianos. Que quando os refugiados chegassem rapidamente seriam mal recebidos. Nada disto aconteceu: os portugueses estão firmemente ao lado da Ucrânia, e ao lado da Liberdade. E, acredito eu, continuarão a estar.
Como escreveu Volodymyr Zelensky no seu recente livro A Message from Ukraine:
“This process did not start on 24 February. Ukraine did not appear on the world map in early 2022. Ukrainians were not born in the moment of the (…) invasion. We were, we are and we will be; we have existed, we exist, and we will continue to exist. And so, while we appreciate the help, support and attention the world has given us, the bravery of our people must not start being taken for granted. War must not become a routine.
Do not forget about Ukraine. Do not get tired of Ukraine. Do not let our courage go ‘out of fashion’.”
A que acrescento humildemente: Slava Ukraini!