Poderia ter a denúncia anónima contra Pedro Passos Coelho outro destino que não o de arquivamento? Muitos gostariam que pudesse. O próprio sugeriu que se pudesse prolongar a investigação para além dos prazos de prescrição, com o objectivo de ver declarada a sua inocência. Importa por isso analisar, do ponto de vista jurídico, o despacho de arquivamento para verificar se poderia ter sido outra a decisão da Procuradoria Geral da República.  

1. Qual é o significado de um arquivamento por prescrição?

O processo penal – e a intervenção do Ministério Público nele – não é um exercício de voyeurismo político ou social, ou, sequer, de respeitável investigação histórica ou sociológica. É um instituto jurídico, que só se justifica e compreende se puder servir para o esclarecimento de uma dúvida socialmente existente, e socialmente consistente, sobre a prática de um crime e a responsabilidade dos seus agentes e, no caso de uma resposta afirmativa a essa pergunta, para a efectivação dessa responsabilidade, mediante a execução da pena.

Por essa razão, por um princípio básico de economia, o processo penal não tem qualquer sentido se não puder ter essa utilidade.

O que explica que – ainda que isso não interesse à pessoa indicada como agente, que gostaria de ver formalmente declarada a sua inocência – o processo deva ser arquivado, sem qualquer investigação, sempre que  qualquer possível e eventual responsabilidade esteja já extinta, designadamente por prescrição.

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Impõe-se, por isso, ao Ministério Público, arquivar o inquérito, sem qualquer investigação, sempre que conclui que, ainda que os factos alegados por quem quer que seja fossem provados, o procedimento criminal estaria prescrito.

O que significa que uma declaração de prescrição não envolve absolutamente nenhum juízo acerca dos factos imputados. Nem sequer de possibilidade. A base factual de uma declaração de prescrição é meramente de hipótese abstracta, isto é, de uma hipótese que se admite sem conceder: ainda que, por mera hipótese abstracta (quer dizer, cuja base não se afirma) fossem reais os factos imputados, o procedimento estaria prescrito e o processo penal não serviria para nada.

É, pois, deslocado e intrinsecamente violador da honra das pessoas envolvidas, invocar um  despacho de arquivamento como base para a afirmação de uma dúvida (ou suspeita) sobre a responsabilidade das pessoas alegadamente envolvidas.

2. O crime de branqueamento

O crime de branqueamento de capitais é um crime que pressupõe a prática de um outro crime, chamado crime antecedente ou subjacente, uma vez que consiste, grosso modo, na dissimulação das vantagens económicas obtidas mediante a prática de outros crimes.

Apesar de, em muitos aspectos, serem, altamente discutíveis, senão positivamente viciosos, os termos em que o crime de branqueamento  está legalmente previsto, na sua aplicação, importa ter em conta dois pontos absolutamente cruciais.

Antes de mais, é absolutamente evidente que ele não pode ser aplicado indiscriminadamente, sempre que um agente aproveita os resultados de um outro crime.

Caso contrário, como escreveu um grande jurista português – Oliveira Ascensão – , uma pessoa poder ser punida por furtar um peru e por comê-lo. A verdade é que a pena aplicável ao furto já está pensada para cobrir o facto ulterior absolutamente normal e natural do consumo da coisa (por isso não se aplica se o agente restituir o que furtou) e punir os dois representaria multiplicar indevidamente a punição.

Isto quer dizer que, mesmo que houvesse qualquer indício que levasse a admitir a possibilidade de qualquer crime que gere vantagens patrimoniais (como a fraude fiscal) – e já se viu que a declaração de prescrição não significa isso, mas apenas uma possibilidade meramente abstracta – isso não levaria, sem mais, a ter de admitir e decidir especificamente a possibilidade de um crime de branqueamento.

Este só existe quando se demonstrem, para além do crime base, manobras destinadas à dissimulação ou transformação, numa palavra, à lavagem do dinheiro obtido com o crime. Não existe qualquer crime se o agente se limita, por exemplo, a depositar o produto do crime na sua conta bancária.

Por essa razão, porque não basta a existência de um crime que produza vantagens para a existência de um crime de branqueamento, a admissão, meramente em abstracto, da existência de um crime de fraude fiscal não implica necessariamente a análise da existência ou inexistência de um crime de branqueamento.

Seria necessário qualquer indício de que as vantagens provenientes do crime tivessem sido dissimuladas ou transformadas, numa palavra, lavadas ou branqueadas.

O processo penal, se não serve nem para satisfazer voyeurismos, também não é campo de exercícios intelectuais.

O outro aspecto a salientar diz respeito especificamente à prescrição.

Os prazos de prescrição variam consoante a gravidade do crime: são maiores os prazos de prescrição dos crimes mais graves e menores os prazo de prescrição dos crimes menos graves. Basta olhar para o artigo 118º do Código Penal.

Ora, é certo que a lei determina uma pena própria para o crime de branqueamento.

No entanto, muito compreensivelmente – mais exactamemte: por força do princípio da proporcionalidade – desde sempre estabelece que os limites das penas aplicáveis ao branqueamento não podem ser diferentes dos das penas aplicáveis aos crimes subjacentes, ou seja, dos crimes que deram origem às vantagens branqueadas. Hoje em dia, essa regra consta do artigo 368º-A, n.º 10, do Código Penal

Assim sendo, o prazo de prescrição do crime de branqueamento nunca pode ser superior ao prazo de prescrição do crime subjacente, ou seja, 5 anos.

Por essa razão, em abstracto, ou seja, admitindo por mera hipótese e não concedendo, que tivesse sido praticado um crime de branqueamento de vantagens de um crime de fraude fiscal (ainda que qualificada) em 2007 estaria já hoje inequivocamente prescrito.

Sob estes aspectos, parece-me absolutamente irrepreensível o despacho de arquivamento publicado.

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa