Fred Moten chama-lhe fugitividade, à qualidade evasiva da negritude, que consiste em deixar os outros entrarem em nossa casa, sem os convidarmos a ficar, dar-se a ver sem ser visto, fazer como Ghostface Killah do Wu-Tang Clan, que apregoava há trinta anos Now you see me now you don’t. Venho pensando nesta natureza fugitiva e procurado por ela à minha volta. À primeira vista, pareceria uma forma de auto-defesa, de auto-preservação, num mundo ameaçador para os corpos negros, mas é mais do que isso. Talvez se trate de uma forma de preservar aquilo que, dentro de cada um, é um elemento inviolável: e, nesse aspecto, a fugitividade é tanto mais interessante quanto é uma disposição que não se restringe à negritude, mas tem um grau de generalidade muito mais vasto. Quantos de nós não nos protegemos de ameaças, reais ou imaginadas, deixando-nos ver, sem nos mostrarmos completamente?
Moten encontra na disposição fugitiva uma inclinação para fora, para estar fora do foco, fora de casa, em fuga.
Vou deparando esta inclinação nos próximos assim como na arte, por exemplo nas fotografias de Deana Lawson, de espaços domésticos, mas o que aí vemos é verdade para a obra de muitos outros fotógrafos. Retratam pessoas que nos olham de frente, e no entanto nada vemos, ou sentimo-nos colocados diante de fantasmas ou de imagens opacas. Aparecem-nos em casa, em imagens que revelam a vida doméstica. Podemos aproximar o olhar, ver de perto, perceber o que têm nas estantes e em cima da mesa, contar os botões das suas camisas. E, no entanto, nada vemos.
É uma qualidade estimável na arte visual esta de dar a ver sem violar, de preservar o que, nos sujeitos representados, é íntimo de mais para ser visto ou observado. E também nos podemos perguntar se isso que não é mostrado foi visto pelo artista, que no-lo escondeu, se ele viu e escolheu guardar de nós, ou se é qualquer coisa a que nem o artista teve acesso.
Procurei pela condição fugitiva nas imagens de Alberto Henschel de pessoas escravizadas no Brasil e noutros arquivos: também aí, apesar da pose encenada e das indumentárias, damos com pessoas de que não vemos nada, cujo olhar se defende da câmara e nada revela: opacas, ambíguas, evasivas, desafiantes.
E por fim indago essa condição nas pessoas que conheço, negras ou não. Quanto do que penso ver a respeito dos outros é só aquilo que escolheram mostrar-me? Até que ponto escolhemos nós a extensão em que nos revelamos aos outros? Será que nos conhecemos, ou estamos em fuga diante mesmo aqueles que nos são próximos?
Se Fred Moten pensou a fugitividade como uma qualidade inerente à negritude, talvez precisemos de pensar em termos de um “devir negro” do mundo, porque encontro a fugitividade por todo o lado, sempre que alguém é, diante de mim, ambíguo em vez de claro, sempre que noto que nos protegemos uns dos outros mesmo que confiemos uns nos outros. Fugitividade não é timidez ou acabrunhamento, mas uma inclinação constitutiva, como defende Moten, para sair de casa para a rua, para o colectivo, para o estar com os outros por oposição a fecharmo-nos. E no entanto apenas se entende o que significa ser um fugitivo nos seus termos se pensarmos que raramente se foge sozinho. Fugir é protegermo-nos de ser invadidos, manipulados, maltratados, violentados. Mas a fuga conjecturada por Moten é fuga para o mundo, feita em conjunto. É a negação da solidão e do estar sozinho e o encontro com aquilo que em nós só pode ser feito em comunhão com os outros. Uma ideia de irmandade subjaz ao ideal da fugitividade, talvez para entendê-la seja preciso já nos termos sentido acossados. É a ideia de que para fugir preciso de fugir com os meus. E a de que apenas colectivamente podemos salvar-nos.
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Sobre evasão
Uma ideia de irmandade subjaz ao ideal da fugitividade, talvez para entendê-la seja preciso já nos termos sentido acossados.