Como muita gente, também eu fiquei surpreendido com o notável alcance teórico do artigo que Isabel do Carmo publicou esta quarta-feira no Público (“Impostos e gordura”). Depois de levar a cabo uma defesa do Orçamento de António Costa e de designar os inimigos internos e externos do povo português, Isabel do Carmo estabelece uma importante relação entre dois aspectos aparentemente díspares da nossa actualidade: o “neoliberalismo” e a obesidade. “O neoliberalismo tem-se relacionado com o aumento da obesidade”, escreve, para quase logo a seguir acrescentar: “O neoliberalismo faz mal à saúde”. A conclusão é magistral, digna de um pré-socrático: “Isto anda tudo ligado”.

Não é aqui o lugar para expor a série de reflexões que este significativo contributo intelectual de Isabel do Carmo inevitavelmente suscita. Tenho a certeza que alguém, talvez até a própria, nos poderá em breve oferecer um aprofundamento da doutrina. Fiquemos, portanto, à espera. Entretanto, a coisa a mim lembrou-me um livro americano que li, há cerca de dez anos, em tradução brasileira. Uma nota. Até há uns tempos atrás, as traduções brasileiras tinham, em geral, má fama. E, lamento dizê-lo, uma má fama em larga medida justificada. Não saiu da minha memória o momento em que, lendo um livro muito conhecido de Colin Macpherson, A teoria política do individualismo possessivo, em tradução brasileira, descobri, com grande espanto, que Locke era um precursor do General Will. A convicção da existência de um grande filósofo político até então de mim inteiramente desconhecido durou, é claro, pouco. O tradutor tinha, por assim dizer, personificado a vontade geral de Rousseau na figura mítica de um gigante do espírito.

Mas as traduções brasileiras mudaram muito e hoje em dia são óptimas. Não é que me sirva muito delas, mas como em 2006 vivi uns tempos no Rio (enfim, “viver” é excessivo: passar seis meses num lugar não é suficiente para viver nele), acontecia-me comprá-las. E uma das que comprei foi a de um livrinho de um importante filósofo americano contemporâneo, Harry Frankfurt, intitulado, no original, On Bullshit (o livro tinha estado, no ano anterior, em primeiro lugar na lista dos mais vendidos do New York Times). Num golpe de génio, o tradutor brasileiro (Ricardo Gomes Quintana, merece ser nomeado) decidiu traduzir o título por Sobre falar merda. Não podia ter decidido melhor.

O que o livro pretende oferecer é, de facto, “uma compreensão teórica do que significa falar merda”. Para tal, é necessário distinguir o “falar merda” de certos conceitos próximos, como, por exemplo, o de impostura. “Falar merda” possui algumas afinidades com a impostura, mas não se confunde com ela. Nomeadamente, a impostura possui uma relação directa com a mentira, e, portanto, com a consciência da verdade e da falsidade, que “falar merda” não tem. “Falar merda” encontra-se próximo de “mentir”, mas não é mentir.

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Qual é, então, a característica fundamental de falar merda (abandonemos as aspas, que são incomodativas)? Harry Frankfurt define-a convincentemente. É uma absoluta falta de preocupação com a verdade. “É essa falta de preocupação com a verdade – essa indiferença ao modo como as coisas realmente são – que considero a essência do falar merda.” Quem fala merda oculta algo sobre si, em particular “que o valor de verdade de suas afirmações não tem um interesse fundamental para ele”. “Seu enfoque não é sobre os fatos, como o do homem honesto e do mentiroso, a não ser que sirvam o seu interesse de se safar com o que diz. Ele não se importa se as coisas que fala descrevem a realidade corretamente. Apenas as escolhe ou inventa para satisfazer seu propósito”. Em razão dessa radical inatenção à verdade (que o mentiroso, em função da sua prática, não partilha), “o hábito normal de se atinar com a realidade das coisas pode atenuar-se ou até perder-se”.

Essa característica do falador de merda aproxima-o, nota Frankfurt, daquilo que na tradução brasileira é nomeado como “falação”, bavardage, o que poderíamos chamar “conversa fiada” (em brasileiro, mas talvez não seja exactamente a mesma coisa, “papo furado”), que se traduz na necessidade de, numa altura ou outra, “meter o malho” (expressão “na qual o termo malho é, muito provavelmente, um substituto mais higiénico para merda”). Mas a conversa fiada, o papo furado, também não se confundem com o falar merda. Em particular, no papo furado ninguém se leva excessivamente a sério, ninguém presume excessivamente estar a exprimir as suas convicções mais profundas. Pelo contrário, o falador de merda, apesar da sua indiferença para com a verdade, leva-se a sério e aparenta exibir convicções profundas. O levar-se a sério é, de resto, necessário para que ele leve adiante o seu programa “de produção de merda em todo e qualquer âmbito que as circunstâncias possam requerer”.

Frankfurt interroga-se sobre qual a razão da nossa esplêndida tolerância para com os faladores de merda. E, mais uma vez, a sua explicação é convincente: “Na verdade, as pessoas tendem de fato a ser mais tolerantes com a falação de merda do que com a mentira, talvez porque sejamos menos propensos a tomar aquela como uma afronta pessoal”. A mentira magoa-nos porque sentimos a consciência da verdade e da falsidade no mentiroso. Não a sentimos, muito compreensivelmente, no falador de merda. Por isso, este último goza de uma magnífica liberdade. O enfoque da pessoa “que tenta conseguir as coisas falando merda” é “panorâmico em vez de particular. Ela não se limita a inserir determinada falsidade num ponto específico e, dessa forma, não se vê restringida pelas verdades que rodeiam esse ponto ou que o atravessam. Ela está preparada, tanto quanto é preciso, para camuflar o contexto também”.

Por mim, creio que Harry Frankfurt conseguiu levar a cabo com inteiro sucesso o seu desígnio de fornecer uma ossatura teórica ao “falar merda”. Neste sentido (puramente técnico e não ofensivo, apresso-me a dizê-o), é legítimo, por mais admiração que se tenha pelo esforço especulativo de Isabel do Carmo no seu estabelecimento de uma relação causal entre o neoliberalismo e a obesidade, perguntarmo-nos se, no fundo, ela não estará, pura e simplesmente, a falar merda. A mim, por acaso, parece-me que sim. Mas nisso ela não se encontra de modo algum isolada. Nestes tempos, fala-se imensa merda, com a convicção toda permitida por uma soberana indiferença pelo conhecimento dos factos pertinentes. É quase mais a regra do que a excepção. E Isabel do Carmo está, infelizmente, longe de constituir um dos exemplos mais surpreendentes.