Este texto foi escrito, como editorial do Público, a 2 de Julho de 2004, dia em que Sophia de Mello Breyner Andresen nos deixou: 

 

Devo-lhe o primeiro poema que decorei, trauteando estrofes que nunca mais me saíram da memória – “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar…” – e não sei até que ponto essas palavras simples me influenciaram para ser o que sou hoje, jornalista. Os meus filhos devem-lhe as palavras mais belas que lhes lemos quando meninos, as de “A Menina do Mar”. E todos devemos-lhe o que de mais simples, luminoso e certeiro foi escrito sobre a madrugada de 25 de Abril de 1974, “o dia inicial inteiro e limpo”. Inteiro. E limpo.

Porque Sophia tinha o mais raro e mais precioso dos dons: o de dizer imenso com uma total economia de palavras. Os poemas que nos deixou têm, como escreveu Eduardo Lourenço, “sabedoria mais funda do que o simples saber”, possuem o conhecimento “do essencial”. E a sua vida, a forma como a viveu, discreta mas sempre presente, sobretudo quando a sua presença era necessária, nunca demasiado longe do mar, sempre dentro do que é essencial no humano, foi a vida de uma grande senhora que sabia que se tinha libertado da leis da vida e da morte.

“Corajoso é combater o que está à nossa frente e no poder” disse um dia, e isso é que a divertia. A desafiava. E também a fazia uma mulher à parte, sempre vertical, sempre consciente de que não tinha de se impor pois estava onde tinha de estar – entre os grandes da nossa poesia. E da nossa escrita. E da nossa cidadania.

O seu segredo talvez não estivesse, como sugeriu Agustina Bessa Luís, em ter “virtudes de rainha”, que tinha, mas sua capacidade de estar acima do terreno que pisamos, na sua capacidade de, nas palavras de Eduardo Lourenço, estar “aquém ou além da História, inteiramente imersa na Natureza”. Algo que assumia: “Tive amigos que morriam, amigos que partiam/Outros quebravam o seu rosto contra o tempo/Odiei o que era fácil/Procurei-me na luz, no mar, no vento”. E registava num poema a que chamou “Biografia”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Os que não têm o dom de assim resumirem, em quatro linhas singelas, o que são, procuram, procuraram, procurarão nas palavras que nos deixou ao longo das seis décadas em que foi publicando, nunca em demasia, algo que nos possa ajudar a ser sombras do que ela foi, íntegros e verdadeiros, mesmo que tal seja inalcançável. E então talvez tropecemos nestas outras palavras que, como a estrofe que continua a não me sair da cabeça, mantêm uma actualidade impensável apesar de publicadas, pela primeira vez, em 1958:

Este é o tempo
Da selva mais obscura

Até o azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura

Esta é a noite
Densa de Chacais
Pesada de amargura

Este é o tempo em que os homens renunciam

Renunciam? Sophia nunca renunciava.