Em entrevista concedida ao Público, Carlos Abreu Amorim (CAA) decidiu “revelar” que já não é um liberal, porque terá descoberto, entre a crise financeira e o caso BES, que há uma contradição insanável entre a “natureza humana” e o “liberalismo económico”. “O agente económico”, diz o entrevistado, “deve ter [sic] regras fortes e devem existir instituições que forcem [sic] a sua aplicação”.
Apesar da suposta gravidade do momento, enfatizada pelas parangonas de um diário destacado, a “revelação” de CAA é completamente irrelevante. O autor não tem o menor peso intelectual ou político. Não é propriamente o mesmo do que Raúl Castro renunciar ao comunismo, Richard Dawkins admitir a plausibilidade da cosmologia teísta ou Francisco Louçã elogiar os princípios económicos da Escola de Chicago.
As palavras de CAA são interessantes por razões objectivas: pelo que dizem e não por quem as diz. Constituem uma oportunidade de ouro para desfazer vários equívocos antigos e comuns, na cultura pública portuguesa, acerca do pensamento liberal.
(a) Se há doutrina política moderna que parte de um preconceito relativamente pessimista da “natureza humana”, ela é o liberalismo. Nas palavras de Kant ― e para evitar o inevitável Hobbes ― “do lenho tão retorcido de que a humanidade é feita nada de inteiramente direito se pode fazer”.
(b) A liberdade advogada pelo liberalismo não é uma liberdade anárquica mas uma liberdade regulada por instituições fortes, entre as quais se destaca o Estado. O liberalismo não se confunde com o anarquismo, nas múltiplas encarnações que vão do extremo sindical ao capitalista. A necessidade de um Estado forte, capaz de manter a paz social e de assegurar a justiça, é uma dos compromissos tradicionais da teoria política liberal.
(c) A “força” das instituições, designadamente políticas, não se mede pela extensão do seu âmbito de actividade mas pela sua capacidade de preencherem as finalidades que as justificam. Um Estado arbitrariamente grande tenderá a ser débil, tal como uma pessoa incautamente pesada tenderá a ser pouco saudável.
(d) Há diferenças assinaláveis, para não dizer astronómicas, entre o liberalismo clássico, aliás saturado de elementos republicanos, de Smith, Kant, Mill, Tocqueville, Constant e Humboldt e o denominado neoliberalismo de Hayek, Friedman ou Nozick. Para termos uma ideia da afluência do património liberal, estes podem reclamar-se herdeiros intelectuais daqueles tanto quanto o podem Rawls, Dworkin ou Habermas, pensadores ditos liberais-igualitários, cujas posições se situam bem à esquerda no arco político mainstream. Entre uns e outros há um amplo espaço de acolhimento de posições intermédias, como as de um Popper ou de um Aron, para citar dois autores conhecidos entre nós.
(e) Muita água correu debaixo da ponte desde que o “longo séc. XIX” (1789-1914), período em que floresceu o liberalismo clássico, chegou ao seu termo. É evidente para qualquer pessoa que leu os clássicos liberais que estes se baseiam em pressupostos sociais que entretanto sofreram alterações muito significativas. O liberalismo clássico surgiu na transição de uma economia agrária para uma sociedade industrial, e constituiu-se primariamente como oposição progressista às estruturas sociais e políticas do Ancien Régime. Não é necessário cair na armadilha metodológica de um sociologismo serôdio para se perceber que o liberalismo contemporâneo não pode emular acriticamente o seu antepassado oitocentista.
(f) O liberalismo não se confunde com a apologia incondicional do mercado, nem sequer aproximadamente. Identifica-se com a defesa da liberdade e da responsabilidade individuais. Muito antes de ser “económico”, o liberalismo é um ideário axiológico ou ético. A associação do pensamento liberal a determinadas instituições, nomeadamente o mercado, é contingente: ela depende da congruência entre estas e os valores que estão na base do edifício doutrinário.
(g) Sabemos hoje, como o não sabiam Mill ou Marx ou Marshall, que o “mercado” é um tipo institucional que admite inúmeras variações ou declinações, tal como o admitem as formas jurídicas que o caracterizam (propriedade privada, contrato, liberdade de acção etc.). Para dar um exemplo, há uma gama vastíssima de tipos possíveis de propriedade privada entre os casos-limite do comunismo primitivo e do controlo estatal. Daqui resulta que qualquer debate político que se centre na aceitação ou rejeição in abstracto do mercado ou da “liberdade económica” dificilmente merecerá crédito intelectual.
(h) A garantia da separação entre o poder político e os interesses económicos é uma preocupação central do liberalismo. Não há nada de surpreendente, do ponto de vista liberal, em casos de promiscuidade entre o Estado e negócios protegidos da concorrência, nomeadamente externa. É justamente por descrer na bondade natural dos homens que o liberalismo não confia no poder económico; a grande virtude da concorrência é que neutraliza a propensão natural deste para colonizar as instituições e explorar as pessoas.
Etc.
O liberalismo tem numerosas debilidades, algumas das quais possivelmente fatais. O mero facto de se traduzir num «ismo» cheio de pretensões homogeneizadoras pode torná-lo imprestável no domínio mundano da política. Esse é, de resto, um problema de toda a filosofia política, essa nobre tentativa de unir o que a realidade tende a separar de forma implacável.
O facto é que nenhuma das debilidades liberais corresponde às razões da apostasia de CAA. Felizmente, nos assuntos do espírito não há declarações irrevogáveis.