A vida está tão difícil para tantos que começo a achar que sim, que a ‘surf attitude’ está a dar. Há décadas que o surf deixou de ser um desporto de australianos muito louros, muito novos e muito giros. Passou a ser uma actividade de ‘crowds’ que se atiram diariamente ao mar, na esperança de apanhar uma onda boa. Nestas multidões que se vestem e despem no meio da rua e nos passeios, entre carros, já vi de tudo: rapazes e homens super em forma, barrigudos em apneia a tentarem enfiar a barriga no fato, miúdas com pinta e ultra competitivas, mulheres com garra para arriscar e começar, avós e netos, pais e filhos, enfim meio mundo convertido à prancha debaixo do braço e ao fato de borracha. Bem dizem os adeptos que “desporto é futebol, mas surf é modo de vida”. Acredito.

Sempre que acontece um fenómeno destes, à escala mundial (é disso que estamos a falar, pois o surf tornou-se um desporto viral nos países com mar) há muitos especialistas a fazer estudos e a publicar conclusões. E também há oradores motivacionais a ir buscar ao surf e às regras do jogo aquilo que podemos aplicar à vida. Na verdade hoje em dia o surf é uma ciência muito complexa e fascinante. Já entrevistei vários destes especialistas e pasmo perante a fabulosa erudição com que falam daquilo que para muitos continua a ser uma actividade que facilmente reduziriam à expressão mínima: remar, ter equilíbrio, perícia e nervo para apanhar boas ondas.

Li recentemente um destes estudos porque me chamou a atenção o registo de metáfora existencial e a maneira como começava: “ponham 200 parisienses depressivos à beira-mar e verão como 200 Psi ficarão desempregados”. O autor, surfista radical confesso, é escritor e professor de Filosofia numa escola de elite, em Paris. Ou seja escapa ao estigma que se colou à pele de muitos surfistas considerados ‘louros’, no sentido mais anedótico do termo. Michael Sebban, citado por Emmanuel Poncet, na revista francesa Psychologies, fala da sua paixão pelo surf dizendo coisas que muitos outros dizem: “vou ao fim do mundo para os trinta segundos sublimes na onda!”. A adrenalina, a noção de liberdade e a ausência de limites parecem o cliché do costume, mas na verdade este professor de Filosofia vai para além dos lugares comuns. Poncet enuncia 7 passos, digamos assim, que podem ser ao mesmo tempo 7 lições tiradas de uma disciplina física exigente e exaltante que, nas palavras do autor, também é uma disciplina de vida. Li estes 7 sublinhados e pareceram-me um fato que serve a muita gente. A começar por mim.

Desde logo, a humildade e a paciência. A humildade perante a grandeza do mar e a força dos elementos que não controlamos; a paciência para nadar e remar; remar e voltar a nadar para apanhar a onda e viver aquele instante único, só repetível novamente à custa de muito esforço, cansaço, frustração e superação. Soa familiar…

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Depois, ter a capacidade de correr riscos, perder o medo de arriscar, aceitar perder muitas vezes, lidar com o erro e o falhanço quando se toca no fundo. Ser capaz de sofrer embates nas rochas e rochedos, perder o equilíbrio e voltar à superfície. Muitos surfistas sabem que travam lutas de vida e de morte com o mar, mas também com os próprios apetrechos do surf, pois podem ficar estrangulados no chope ou levar com a prancha na cabeça. Isto, para não falar dos que surfam as maiores ondas do mundo que por vezes se abatem sobre eles, atropelando-os como se vários comboios lhes passassem por cima, ou centrifugando-os até ao limite das suas forças e oxigénio. Na lógica da metáfora, tudo isto acontece também fora de água, em ambientes de trabalho, na vida política, nas famílias desestruturadas, entre amigos desavindos, nos choques e traumas provocados por doenças, rupturas, crises e perdas. Diz o autor que perante os tsunamis da vida há que perder o medo de atravessar a adversidade. Percebo a ideia, ainda que não sejam passos fáceis para quem se sente afundar…

A terceira lição que Michael Sebban retira da “surf attitude” tem a ver com a chamada estratégia do golfinho. Diz ele que a inteligência, a elegância e a amplitude de movimentos dos golfinhos deviam inspirar a nossa maneira de viver. Soa demasiado fácil? Talvez, mas tem a sua razão . Senão vejamos, os golfinhos sabem aproveitar a onda, seguem a sua intuição e são respeitados pelos tubarões. Posto desta forma, apetece realmente ser golfinho.

Quarta lição? Aceitar que a felicidade não se conjuga com facilidade e mais, que a felicidade é sempre intermitente. Entre uma onda e outra há que remar e penar sem desmoralizar. Viver na maré baixa é difícil, mas o instante em que surfamos a onda compensa tudo. A experiência é de tal maneira intensa e feliz que transposta para a realidade-real, para a vida do dia-a-dia, ajuda a ter endurance para os tempos difíceis. Seja.

Em quinto lugar vem a agilidade perante as agressões. Tal como um judoca, também o surfista (e nós, para quem acreditar neste enunciado teórico-prático) pode usar a energia do agressor a seu favor. Compreendo a teoria e parece-me razoavelmente simples de a conferir na prática. Também aqui a estratégia passa por nos sabermos posicionar perante a adversidade, tentando encontrar alternativas ao confronto. Embater de frente contra o adversário pode dar muito maus resultados e deixar sequelas irreversíveis. Há maneiras mais inteligentes de ser eficaz, sem correr o risco de ficar esmagado nesse mesmo embate. Mais uma vez faz sentido e está intimamente ligado ao passo seguinte.

Não forçar situações e fazer tudo para permanecer leve. Difícil, esta estratégia, mas vital para os surfistas e para todos os que não querem afundar nem perder a vaga. No mar, como na vida, não devemos forçar demasiado uma situação e, muito menos, apoiarmos-nos onde não estamos seguros. Se para um surfista a grande arte consiste em acompanhar o movimento do mar, para um leigo na matéria talvez não valha a pena insistir em fazer as coisas exclusivamente à sua maneira, mas articulando com os outros. Perder o orgulho passa por enfrentar a realidade de que ninguém é uma ilha, e que a força dos elementos (seja ela do mar, dos outros elementos naturais ou de elementos humanos) pode ser mais forte que as nossas próprias forças. E assim voltamos à primeira lição, sobre a humildade dos surfistas perante a imensidão das forças do mar, das correntes e dos ventos. À humildade, mas também à leveza de encontrar estratégias para se fazer leve, para largar carga, para não carregar fardos demasiado pesados que fazem afundar.

Finalmente, a capacidade de acreditar no transcendente. Há quem fale de sensação de eternidade quando cavalga uma onda, e há quem refira o misterioso sentimento de paz e plenitude que acontece por instantes que podem ser apenas breves segundos. Seja como for e dure o tempo que durar, sabem que esse momento mais que perfeito, esses segundos de harmonia com o mar e o universo desafiam as leis terrenas. Estendem os limites e não cabem na lógica dos homens. Muitos surfistas sabem que desafiam as leis do universo quando percebem que nada lhes acontece, enquanto outros perdem a vida ou a saúde por muito menos. Sentem-se superiormente protegidos sempre que levam com massas oceânicas em cima, ficam sem respirar dentro de turbilhões onde são apanhados, e saem ilesos. E é este sentimento de que somos como gotas de água na imensidão dos oceanos, de que nos antecederam muitos, e muitos outros nos hão-de suceder, de que não controlamos verdadeiramente nada e, muito menos o tempo, a vida e a morte, que ajuda a viver e a respirar os que fazem surf, mas também aqueles que nunca enfiaram um fato nem se puseram em cima de uma prancha.