É inegável que a invasão russa da Ucrânia despertou algo inédito. Em poucos dias, o mundo mudou de forma drástica e decisiva e o que há duas semanas era impossível, hoje pode ser provável: o advento de uma segunda guerra fria, que é o sinónimo de viver com a ameaça constante de uma terceira guerra mundial.

A Alemanha, até ontem presa à vergonha dos seus crimes na segunda guerra, assume finalmente a liderança da Europa e triplica o seu orçamento militar. A União Europeia, pela primeira vez na sua história, oferece armamento a um país terceiro enquanto os seus constituintes fecham o espaço aéreo às companhias russas e encerram as emissões das agências noticiosas controladas pelo Kremlin. O Ocidente abre as suas portas aos refugiados ucranianos enquanto as fecha aos oligarcas russos. A expulsão do sistema SWIFT limita o comércio internacional da Rússia e deixa esta nas mãos da China, que assiste a tudo isto enquanto pondera as suas próprias ambições territoriais. Entretanto, a moeda e o mercado bolsista russo estão em queda livre e as empresas ocidentais tentam precipitadamente desinvestir do maior país do mundo. Em simultâneo, o governo de Moscovo tenta impedir a venda de rublos ou de os estrangeiros liquidarem as suas participações em empresas locais. A nacionalização de todos os bens de empresas ocidentais na Rússia parece inevitável e poderá acontecer a qualquer momento.

Chovem pressões para a inclusão de históricos países neutros nas grandes organizações ocidentais, como a NATO e União Europeia. Em meras duas semanas, milhares de voluntários de todo o mundo juntam-se à nova legião estrangeira ucraniana, um tipo de internacionalização que relembra a guerra civil espanhola, a resistência aos soviéticos no Afeganistão e a ascensão do Daesh. Todos momentos particularmente marcantes do último século.

Sem surpresa, entramos agora também na fase what about. Em vários órgãos de comunicação social e nas redes sociais, começamos a ouvir a seguinte provocação: então e o Iémen? E a Palestina? A explicação mais comum dada por quem coloca a própria questão parece ser o racismo implícito e generalizado dos europeus, que choram a morte dos loiros ucranianos de uma forma que nunca fariam com os árabes do Médio Oriente. Menos mal-intencionada e cabal, uma outra interpretação que se vai ouvindo é a de que se trata de uma questão de proximidade física, religiosa ou cultural. Tendo a discordar de ambas as linhas de argumentação já que sofrem das mesmas limitações.

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Se fosse apenas uma questão racial/étnica, por que motivo a invasão de 2014 desta mesma Ucrânia por esta mesma Rússia (quando a Crimeia foi conquistada e anexada) não causou uma comoção comparável? Ou da Geórgia em 2008? Se foi uma questão de distância física, então por que as guerras da Líbia ou Argélia não originaram este tipo de reacção internacional? E se é apenas um problema de distância cultural e religiosa, como explicar que tantos anos tenham sido necessários para que se interviesse nas guerras da ex-Jugoslávia? E se olharmos para a questão cultural, temos a Venezuela com uma gigantesca comunidade lusa e não vemos ninguém a querer um embargo total a esse país, não obstante a agonia sofrida pelo seu povo.

A reacção à invasão de 24 de fevereiro foi imediata, generalizada e global. Não foi arquitectada nem controlada pelos governos que, em grande parte, foram forçados pela sua opinião pública a reagir de forma cada vez mais vigorosa ao avanço russo. Senti-a quando assistia em directo na RT (Russia Today) ao discurso inaugural desta guerra, pela voz de Putin e do seu obediente tradutor. Não precisei que ninguém me explicasse que presenciava um dos momentos históricos da minha vida, como foi a queda do muro de Berlim, o 11 de Setembro, a grande Recessão, a Primavera Árabe ou a Pandemia do COVID-19. A luta heroica do líder e do povo ucraniano nos dias que se seguiram, assim como a mestria no uso das novas formas de comunicação ajudaram decisivamente a fortalecer esse sentimento.

Então e a Palestina e o Iémen?

As questões da Palestina e do Iémen são-me particularmente próximas. Vivi vários anos na Palestina onde deixei muitos amigos. Resido no Médio Oriente quase ininterruptamente desde 2006 e já ouvi centenas de testemunhos palestinianos, das suas dificuldades e dos seus inacreditáveis trajectos que incluem por vezes serem refugiados múltiplas vezes durante a vida. Geração após geração, muitos sobrevivem sem passaportes com apenas uma documentação das Nações Unidas que não lhes abre muitas oportunidades. Sem hipóteses de regresso, guardam religiosamente as chaves de casas há muito destruídas no que é hoje Israel, como tão bem descreveu o saudoso Robert Fisk. A sua situação é uma chaga no Médio Oriente e um tema muito longe de estar resolvido. Ainda esta semana, num inglês limitado, um palestiniano de Gaza acabado de fugir da sua terra me dizia que a sua cidade era Ukraine every day. Mas não é sério afirmar que a questão palestiniana esteja esquecida. Ou que, quando a violência aumenta, não lhe seja dada a devida atenção. Quer Israel quer as diferentes autoridades palestinianas (Hamas incluído) são objecto de enorme escrutínio internacional cada vez que recorrem à violência. Por motivos religiosos e históricos, mantêm muito mais visibilidade do que tantas outras guerras igualmente mortíferas em África, na América Central ou na Ásia.

No meu caso, o conflito do Iémen está bem próximo, com ataques letais por drones a poucas centenas de metros de onde resido com a minha esposa e filhas. Gostaria que fosse dada muito mais atenção mediática a este conflito e dada ajuda aos milhões de inocentes que com ela mais directamente sofrem. O caso do Iémen é extremamente complexo e tornou-se numa guerra civil cruel, como todas são. Mas considero a comparação entre o envolvimento da Arábia Saudita e seus aliados na guerra civil com a recente invasão russa, falaciosa. Com uma guerra civil às portas e os avanços Houthis apoiados pelo seu inimigo figadal – o Irão – não é estranho que tenham tomado partido e estejam a tentar virar a guerra a favor dos seus aliados. Seria comparável se a Rússia tivesse apenas avançado sobre as auto-proclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk. Não foi o caso. Nem a reacção internacional seria a mesma.

Que tem então de especial esta invasão russa quando comparada com a conquista da Crimeia em 2014, da entrada da Arábia Saudita no Iémen ou dos ataques de Israel aos palestinianos e vice-versa? Na minha opinião, a explicação é simples: os ecos da História. O que Putin nos disse naquela longínqua manhã de 24 de fevereiro foi que a Ucrânia não tinha direito a existir. Que era uma ficção. Que eram simplesmente russos reféns de um governo nazi e drogado. Putin mostrou as suas verdadeiras cores, e o que todo o mundo viu – com a vexatória excepção do Partido Comunista Português – foi um conquistador que não irá parar até que alguém lhe faça frente. Que Geórgia, Moldávia, Estónia, Letónia e Lituânia têm todos os motivos para pensar que serão os próximos. Em poucos dias, a Rússia de Putin passou à ameaça nuclear sobre o Ocidente e à intimidação sobre a Finlândia e a Suécia no caso de estas pretenderem entrar na NATO. Na Rússia, os manifestantes são espancados e presos por serem contra a guerra, a polícia vê os registos de mensagens dos telemóveis de transeuntes, e os últimos órgãos de comunicação social livres foram encerrados. O que todos vimos foi um regresso aos anos 30, quando alguém igualmente decidido a provar a grandeza da sua nação e a legitimidade da lei do mais forte invadiu país atrás de país, convencido de que ninguém seria capaz de arriscar fazer-lhe frente. Estamos diante do Anschluss, dos Sudetas e de Danzig. Tal como a geração dos seus avós, a Europa volta a ter que decidir se e quando se levantará perante o opressor.

Ao contrário da Terra Santa, do Iémen, da Síria ou da Líbia, esta Rússia tem ambições imperiais. Putin domina o maior país do planeta e provavelmente detém uma das suas maiores fortunas, mas isso claramente não lhe chega. E isso faz desta guerra algo muito diferente de todas as outras que actualmente persistem no mundo. Não foi por racismo que o mundo se sobressaltou, foi por intuição. Se a China ousar invadir o Taiwan, a reacção será exactamente a mesma. E talvez esse seja um dos poucos benefícios desta crise. O mundo pode ainda aturar tiranos, mas não tolerará novos conquistadores.