1 Não sei o que fazer com o inverno. Nunca soube. Às vezes ouço falar das maravilhas que supostamente amenizariam a recusa da pior estação — o “aconchego” das casas quando escurece, os dias “bonitos” de inverno, o “ler à lareira”, as caminhadas pelo “campo molhado do inverno, um chá em dia de chuva” — e outras inconvincentes “redações” de escola primária, a cuja enumeração me dispenso: haverá algo de mais desolado do que a paisagem despida do inverno? Do que a moleza húmida que nos captura, as falhas de energia que nos limitam a vontade, a melancolia dos dias, o inviolável escuro da noite a chegar cedo de mais, a tristeza fininha que tudo tinge?
2 Para não evocar a falta de “anima” que pode até tolher as melhores intenções como a de cumprir as obrigações que alguns – por poucos que sejam – esperam que eu cumpra: escrever mais e mais sobre uma carga fiscal a rebentar com a classe média; indignar-me contra aquele cómico brasileiro logo acolhido pela media nacional por ter virado o dente ao deputado do Chega e com isso se transformando do pé para a mão em alguém mencionável. A ninguém ocorrendo que um país decente não aprecia ouvir os de fora humilhar os de dentro, sejam eles quais forem (sendo certo que o cómico não resistiria aos insultos, caso o seu julgamento político se tivesse abatido sobre algum radical); envergonhar-me com a continuada situação dos hospitais sem médicos e urgências repetidamente fechadas e com escolas sem professores nem vigilantes; afligir-me com a indiferença que rodeia o escandaloso preço dos manuais escolares — uma bandeira séria à disposição de uma Direita quase sempre distraída ou preferindo outras e piores tentações; pasmar-me com um governo que aumenta os seus elementos na razão inversa da sua eficácia, espalhando-os inutilmente pelo “interior” e à nossa custa; entristecer-me com o silêncio mediático e cultural que rodeou a exposição –sobrelotada de gente — da passada semana no Museu do Fado, alusiva à história de vida de José Pracana: guitarrista de génio, ex-libris da história do fado, homem admirável e amigo memorável. Já quando ele partiu desta pátria que consente a si mesma ser de filhos e enteados se estranhou a indiferença que José Pracana não merecia. Talvez porque, do alto ao baixo da pirâmide, se protegem os filhos e ignoram os enteados. Coisa estranha.
E por aí fora (e por aqui dentro). Mas chove, o que torna tudo ainda mais viscoso que é outra forma de dizer inaceitável.
Mas são tão poucos os verdadeiramente preocupados, não é?
3 Não fora o maldito inverno, a lama, a chuva e o vento que batia forte e ter-me ia atardado com inesgotável deleite no coração do Porto, cidade da minha grande estimação e não é de agora. Só que é agora que se tornou visível e quase parecendo posta em relevo a beleza da recuperação do seu centro histórico, onde há dez, quinze anos ninguém lá ia e poucos lá viviam (com medo de tudo).
O Porto, aquele Porto, dantes disfarçado na sombra lúgubre do abandono e do descuido, revigorou, caprichou, embelezou. Ressuscitou. Espreita, omnipresente, de todos os lados: fachadas com o granito a reluzir, casas restauradas que subitamente nos lembram de como eram belíssimas no seu porte elegante de altas janelas, igrejas pintadas, edifícios públicos cuidados, ruas arranjadas, espaço público alindado, excelente mobiliário urbano. Ouvi muitas queixas de “turismo a mais”. Pode ser, não vivo lá, seria abusador entrar em considerações ou quantificações. Preferi atender ao que, rua após rua, praça após praça, mais convincentemente se impunha: a alma da cidade, a sua matriz devolvida. Urbanisticamente magnífico, dei com um Porto ora inventivo, ora tradicional, ora alternativo, ora surpreendente, mas sempre “ele”. O impacto quase (me) vencia o inverno.
É que pensando bem talvez não haja cidade portuguesa com assinatura própria tão forte, tão impressiva, tão vincada.
4 Também tropecei no inverno que envolvia os jardins da Casas das Artes e da Casa Allen que gostaria de ter revisto com tempo mas a chuva vetou-me essa saudade. Restou-me apenas atravessá-los para ouvir Mário Cláudio, Gaspar Martins Pereira e Germano Silva, deambular com infinitos “saberes” pelos “vários Portos” que convivem na cidade, a propósito do lançamento do livro memorialístico de João van Zeller (“Johny Boy”, Afrontamento). E tal como o Porto das décadas de quarenta e cinquenta do século XX que o autor copiosamente ali nos “serve”, com minuciosas e prodigiosas lembranças, também eu naqueles jardins brevemente entrevistos, me lembrei de olhar para trás. E de procurar na memória as incansáveis gerações de jardineiros de outras épocas, debruçados com um amor sem fim sobre a terra dos canteiro, o corte do buxo, a poda das árvores centenárias, a mancha das cameleiras, as filas de rosas. Suspeito que nunca ninguém tenha agradecido suficientemente esta geografia particular deixada em herança pela idiossincrasia britânica em tantos “Portos”.
5 Com a invernia sempre a colocar-se entre o que ela me consentia e o que eu tencionava fazer não pude, por estes dias, apreciar como devia uma parceira inesperada. Falo de uma gaivota que conheci na varanda do meu quarto de hotel, no novíssimo Flores Porto Bay (tenho a factura da conta comigo). Amanhecer, entardecer, anoitecer, ela fazia-me companhia, nunca arredando as asas do muro da varanda de onde se via a Sé, o Paço Episcopal e o Porto a espraiando-se até ao rio. A cidade só para mim. A gaivota, como aquele cenário estampado na janela, devia ser privativa. E não fora a implacabilidade do clima e mais loquazes teriam sido as nossas conversas.
Mas o que é o inverno senão este pródigo produzir de “impossibilidades” em tempo real?
6 Vivem-se tempos de invernia. De inquietação colada à incerteza do mundo. De um ressentido mal estar que entrou em cena para ficar. Do uso bom da resistência à pratica má da violência. Da fragilidade desnorteada das lideranças em cidades, países, continentes e blocos políticos. Olha-se para lá e tem-se medo. Invernia da (muito, muito) pesada.