Já em anos anteriores a Família Cavaco tem testado um tipo de ciclo de cinema em casa na semana do Halloween. A escolha dos filmes é talvez mais lectiva do que lúdica e por isso antiguidades impõem-se. Já vimos o “Nosferatu” do Murnau (um filme com 100 anos que, na original ausência de som, continua a ser horripilante), já vimos o “The Last Man On Earth” (com o obrigatório Vincent Price na história escrita pelo Richard Matheson, de onde mais tarde viria o “I Am Legend” com o Will Smith), e vimos recentemente o “Psycho” do Hitchcock. Os nossos filhos bem se queixam da ausência do açúcar tecnológico do cinema de hoje mas, se Deus quiser, terão uma vida pela frente para se empanturrarem em lixo, já longe do nosso olhar paternalista. Educar também é impor dietas decentes tendo em conta que o futuro da engorda a eles lhes pertence se, a pretexto do livre-arbítrio, quiserem estragar o melhor que os pais lhes tentaram dar.
Este ano não quis que falhasse “O Sétimo Selo” do Ingmar Bergman. Tive de lhes aturar as queixas amuadas em jeito de “mas isto é um filme de terror?” O certo é que no fim o desconforto estava instalado. Ainda que aquela hora e meia sueca tenha espaço para humor tosco e desencontros abarracados, quando chega o clímax do filme topamos que se instalou vagarosamente um sobressalto. Uma partida de xadrez com a morte pode até envolver um ritmo lento mas é um jogo que inevitavelmente trará um desfecho. E a morte ninguém consegue fintar. A última cena, com aquele grupo guiado pela mão da ceifeira filmado ao longe, é uma visão que dificilmente se esquece—tão batida mas tão brutal.
Qual é a vantagem de darmos bons filmes de terror aos nossos filhos? Não quero que a resposta venha em modo demasiado defensivo até porque esta é uma causa não-oficial da nossa família (não temos o cinema de terror como um objecto educativo fundamental). Mas creio que o mérito do cinema de terror (que tão naturalmente entrou nas mais primordiais experiências filmadas) é o que ele traz de contenção e não necessariamente de contágio. O que isto quer dizer é que só uma pessoa muito distraída toma um filme de terror como o iniciador de algum medo que até então não existia. É o contrário, acredito. O cinema, quando aterrorizante, apenas testa imagens que delimitam todo o medo que naturalmente começou antes dele. O centro do meu argumento é este: o que mais nos assusta num filme de terror não é o que ele nos acrescenta no território do pânico; o que mais nos assusta num filme de terror é como ele oferece imagens a medos que já cá estavam e que talvez não soubéssemos. Nessa medida, um filme que dá um abalo pode ser um filme que dá um abc.
Escrito isto, não me passa pela cabeça promover o cinema de terror por si. Céus, há tanta coisa errada com o cinema de terror. A questão é vivermos num tempo em negação. Simplificando muito, a nossa obsessão pela segurança (e, naturalmente, sou a favor de viver seguro) revela uma predisposição ingénua mas arrogante de evitar o medo a qualquer custo. E quando evitamos o medo a qualquer custo, tornamo-nos ironicamente mais susceptíveis a ele. A Flannery O’Connor, aplicando estes assuntos mais à literatura, dizia que “quando o nosso sentido do mal se dilui ou simplesmente desaparece, é esquecido também o preço da restauração”. Se não cultivarmos uma percepção clara do que o mal é, venha ela do que vemos, do que lemos, do que ouvimos, esvai-se a convicção de que o bem, mais do que algo estático, é também a aventura assustadora da redenção do errado. Logo, qualquer povo precisa de uma expressão convicta do medo que tem nas canções que entoa, nas imagens que filma, nas orações que confessa. O assustador é não viver assustado com nada.
Curiosamente, o Halloween funciona mais como um pretexto para a espécie de ciclo de cinema de terror da Família Cavaco. Caramba, somos portugueses e o Halloween não tem nada a ver connosco (em poucos anos isto mudará, estou certo). Tem piada o facto do Dia das Bruxas calhar no Dia da Reforma Protestante: 31 de Outubro. Crê-se que terá sido nessa data, no Outono alemão de 1517 da pequena cidade de Vitemberga, em que Martinho Lutero, já sem pachorra para touradas teológicas, afixou as suas “95 Teses Contra as Indulgências”. Não me custa a crer que alguma mitologia cresça a partir desta história. Mas continuo mais crente do que nunca no seu valor. Lutero é um herói para nós (tenho um livro escrito sobre ele chamado “Cuidado com o Alemão” que pode ser alvo de muitas críticas mas de ser chato nunca foi acusado—comprem-no!). E é mais divertido ainda ter Lutero como um herói num país como Portugal, onde séculos de má publicidade continuam a torná-lo um monstro maior do que foi.
Ter Lutero como herói não é tão diferente assim de fazer ciclos de cinema de terror em família—parece a coisa errada. Mas, mais de quinhentos anos depois, ser Protestante continua a parecer ser uma coisa errada. As razões que tornam o Protestantismo alegadamente errado hoje não correspondem necessariamente às razões que o tornariam alegadamente errado há quinhentos anos. Os anos passam, as razões para ser alegadamente errado mudam, mas matar o Protestantismo ainda ninguém conseguiu. A causa que celebro neste texto é a do privilégio que é meter medo. Precisamente por falta de Protestantismo em Portugal, as pessoas lidam mal com o bem poder meter medo. Deu-se o monopólio do susto ao Diabo quando o Diabo, como Lutero lembrava, é “o Diabo de Deus”. O cavaleiro Antonius Block mostra ao longo de “O Sétimo Selo” um espantoso à vontade com a personagem visível da Morte: é com o Deus invisível que o nervosismo lhe começa. Enquanto formos tão espantosamente bem sucedidos em impedir a insegurança das nossas almas, seguramente não encontraremos o caminho para o Céu. Venha a ceifeira tomar-nos a mão para o abismo.
Bom dia da Reforma Protestante para todos amanhã!