Alguns dirão que foi um daqueles casos típicos de silly season, mas não sei se concorde. Primeiro, porque já não há bem silly season, não porque tenha desaparecido, mas porque tomou conta de tudo. Um pouco como as estações do ano, outrora bem delimitadas e, agora, cada vez mais diluídas num tempo indefinido. Já nem o país trava a fundo em Agosto, nem as notícias ditas tontas nos abandonam o ano inteiro, cortesia do mundo pós-redes sociais. Depois, porque o caso da ponte foi lateral, mas não, certamente, destituído de interesse filosófico.

Recordemos a história: concluídas as Jornadas Mundiais da Juventude, a Câmara Municipal de Lisboa propôs-se baptizar com o nome do cardeal-patriarca Dom Manuel Clemente uma pequena ponte ciclopedonal construída a pretexto do evento sobre o outrora infame rio Trancão. Grupos de cidadãos indignados com o silêncio que imputam ao cardeal nos casos dos abusos de menores na Igreja portuguesa puseram a circular abaixo-assinados contra a ideia, que recolheram, em poucos dias, milhares de assinaturas. Até que, tão rapidamente como começara, o caso acabou, com o próprio Dom Manuel Clemente a pedir para não lhe porem o nome à ponte e assim evitar mais polémicas e desconfortos.

É um daqueles casos extraordinários em que, estando todas as premissas erradas, se chegou ao resultado certo.

Tudo começa na proposta da Câmara, que talvez tenha soado perfeitamente razoável na cabeça de quem a pensou antes das Jornadas Mundiais da Juventude, mas que pouco ou nenhum sentido parecia fazer depois. Afinal, durante aqueles dias em que não se discutiu outra coisa se não as JMJ, falou-se muitíssimo do Papa, de Dom Américo Aguiar, coordenador da organização por parte da Igreja e depois, até surpreendentemente, nomeado cardeal; de Moedas, de Marcelo, do governo, de muita gente – mas não de Dom Manuel Clemente, que, ao que parece, até aproveitou a ocasião ruidosa para sair de cena à francesa, passando a pasta do patriarcado e tudo o que ela envolve ao próximo e não ao mesmo.

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No entanto, o facto de a tese não fazer muito sentido não confere automaticamente um à antítese. A prontidão – compreensível, legítima – dos movimentos cívicos em contestar a intenção camarária acabaria por se confundir com uma acusação sem provas a um homem colocado paradoxalmente no cadafalso por um desígnio político que o pretendera homenagear.

No fim, sobra o absurdo, latente em toda a situação: eis um país a levantar-se em coro para travar o baptismo de uma ponte ciclopedonal sobre o Trancão, como se estivéssemos a falar da nova travessia sobre o Tejo ou do aeroporto de Santa Engrácia. Dar nome a pontes ciclopedonais sobre rios com um passado de esgoto, devia, na verdade, contar como pena. Penitência. Uma nova modalidade de punição e reinserção social alternativa às prisões sobrelotadas: já tínhamos as multas, o serviço à comunidade; agora, passávamos a ter o nome do condenado atribuído a sítios estúpidos. O Beco do Joe Berardo, a ETAR Ricardo Salgado – por aí afora.

O que nos leva de volta ao princípio: o autor da ideia queria mesmo homenagear Dom Manuel Clemente? E os autores dos abaixo-assinados? Não lhe acabaram a fazer um favor?

Tudo somado, a atitude mais acertada foi a do visado, que conseguiu fechar com um mínimo de dignidade um assunto que não começara: obrigadíssimo, mas não é preciso.

Apesar de tudo, saúda-se a participação cívica que se espera volte a repetir-se em futuros casos, num país que, até aqui, não costumava dar por acrobacias toponímicas bem maiores, como aquele em que a Câmara de Lisboa – então, em pleno reinado Costa-Medina – mudou, entre as gotas da chuva, o nome ao antiquíssimo Campo Grande para Jardim Mário Soares, o santo da sua devoção (mesmo que, para desgosto dos proponentes, toda a gente lhe continue a chamar Campo Grande e assim vá continuar, tendemos a crer, até mais ou menos ao fim dos tempos – ou que a Time Out compre o jardim, o que é mais ou menos a mesma apocalíptica coisa, e lhe retoque o “naming”).

E agora? Tudo está bem quando acaba bem? Não. Ainda temos uma ponte sem nome, a ligar Loures e Lisboa. Uma ponte enjeitada, uma ponte, simultaneamente, demasiado boa e demasiado má para receber um nome, a ponte que terá agora sempre de se contentar com um baptismo de segunda escolha.

Fica, a quem possa interessar, uma lista de alternativas: Ponte sem Nome, Ponte Indignada, Ponte da Juventude, Ponte Papa, Ponte Rede Social, Ponte Abaixo-assinada. Ponte do Vocês-sabem-do-que-eu-estou a falar, Ponte do Obrigadinho, Ponte Vai Tu, Ponte Já Ias, Ponte Já Foste. Ponte do Vamos Andando (afinal, é uma ponte ciclopedonal), Ponte Cá Estamos, Ponte do E Quem É que Paga Isto?, Ponte Papista, Ponte Bernardino, Ponte de Lama (depois de Ponte de Lima), Tolerância de Ponte, Ponte Por Onde Se Lhe Pegue, Ponte do Bitaite, Ponte Clemente, Ponte Manel, Ponte Rebuçado, Ponte Anónima (como as fontes). Ponte Prà Frente É Que É Lisboa, Ponte Que Não Dá Ponta. Ponte do Contra, Ponta do Acho Mal, Ponte do Leva Lá a Bicicleta. Ponte Moedas, Ponte Ana Catarina, Ponte dos Casos e Casinhos, Ponte Costa, Ponte Marcelo, Ponte Bordello, Ponte Chico, Ponte Nada, Ponte do Logo se Vê (em homenagem a essa forma verdadeiramente única que o português tem de resolver todo e qualquer problema).

Ou então, seja a Ponte do Silêncio, que é dele que estamos a falar. A Ponte Cega, a Ponte Calada, sobre todo o passado sujo que corre debaixo dela e, um dia, há-de desaguar em justiça.