Fiquei doente esta semana, com um vírus qualquer que me põe a tossir nocturnamente. Acordo para tossir, tusso, adormeço e volto a acordar para tossir. Não têm sido noites fáceis. Quando me sinto fraco os pensamentos vão atrás. Apanho-me a considerar que, se morrer velho, provavelmente terei um prelúdio semelhante, marcado por tosse, por noites mal dormidas e cansaço generalizado até um clímax em que o meu corpo, já completamente incapaz, se renderá ao Criador. Imagino a minha família e os meus amigos a darem a notícia: “finalmente o Tiago partiu”. Um outro, inspirado pela posse de mais detalhes, acrescentará: “tossiu até ao fim”.
Não deixa de ser curioso que tossir marque a vida e a morte de tanta gente. Creio até que tossir funciona como uma insurreição contra a fala, mesmo que inconscientemente. Para tossir precisamos da mesma boca que tão naturalmente usamos para falar. Tossir interrompe-nos os planos que tínhamos para a nossa boca. Também por isso, tossir marca momentos em que nos atrapalhamos com o que temos para dizer. Existem ocasiões em que o mais grave de um discurso não é o que ele diz mas a tosse que o interrompe. Nunca devemos desprezar a mensagem que tossir pode revelar.
A Bíblia não fala de tossir mas a tradição cristã pensou no assunto. São Brás, arménio do Século III e IV, foi um médico que se tornou bispo. À custa da violência religiosa daquele tempo, refugiou-se numa caverna pastoreando a sua igreja à distância. Quando foi preso e encaminhado para o martírio, cruzou-se com uma mãe com um filho ao colo, aflito por causa de uma espinha de peixe na garganta. Não somente parou para ouvir a mãe como curou a criança. À custa deste relato, São Brás é o santo das gargantas e o padroeiro dos laringologistas.
Protestantes como eu não se refugiam em pedidos a santos antigos, daí que nem São Brás me valha em noites de tosse valente. Fico só eu, ofegante, e Deus, aparentemente quieto. O que faz uma pessoa com má qualidade respiratória? Provavelmente considera na morte, como eu. Nós, que somos produtos da garganta de Deus, que cria as coisas falando, esperamos que ele não nos leve assim tão rápido ao primeiro sinal de fraqueza da nossa. Mas permanece esta lição: tudo na vida são fenómenos de garganta. Partimos da garganta de Deus e a Deus voltamos quando a nossa acaba.
Em Portugal a expressão “é só garganta” é especialmente reveladora. Uma pessoa que “é só garganta” é alguém que não merece confiança. Como seria de esperar, já fui acusado várias vezes de ser só garganta. Tendo em conta que vivo pregando, escrevendo e, volta e meia, cantando, dependo bastante da garganta que me foi dada (ainda que nunca tenha tido uma voz bonita). Ficar calado é sempre um exercício difícil para mim. Talvez estas noites de tosse sejam, no silêncio de Deus e na minha ofegância, uma das experiências mais místicas e transformadoras que possa ter. Ainda assim, gostaria de me pôr melhor.