Não tenho memória do número de meses em que o Ministério Público tem estado sob “fogo cerrado” de importantes setores sociais e políticos da nossa sociedade. Aliás, não tenho memória de um ataque tão permanente e tão profundo à Procuradoria-Geral da República, ao seu responsável máximo e a toda a magistratura do ministério público em geral. A sucessão de casos mediáticos e, sobretudo, de casos que envolvem políticos explicam uma parte significativa desta realidade.

Como advogado e cidadão, que observa estes assuntos muito para além da espuma dos dias e dos processos mediáticos, há muito que olho perplexo para vários temas nos quais o Ministério Público tem falhado por ação ou omissão. Refiro-me a inquéritos que impactam brutalmente na vida das pessoas e que não têm qualquer desenvolvimento durante anos; a apreensões de bens para realização de perícias (sejam por exemplo computadores, telemóveis ou documentos) que tardam tempos infindáveis para serem devolvidos aos seus donos; a constantes e imemoriais violações do segredo de justiça sem que se vejam responsáveis; ou o uso de meios de obtenção de prova altamente intrusivas durante largos períodos de tempo (é certo que nesse caso com responsabilidade partilhada com um juiz).

É, pois, uma evidência que há um conjunto de situações da responsabilidade do Ministério Público que merecem a nossa preocupação e a nossa crítica se queremos evoluir como sociedade e como Estado de Direito Democrático.

Como sem boas fundações não há casas sólidas, também sem um PGR assente numa “rocha” de credibilidade intelectual e profissional e granjeando uma forte aceitação política e social não haverá um Ministério Público forte.

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É, por isso, essencial que o processo de nomeação do próximo PGR, que ocorrerá até ao final deste ano (e para o qual candidatos não faltarão, tal é o número de “artigos de opinião” de putativos candidatos que têm dado à estampa), seja compreendido por todos substancialmente mais do que sucedeu nos últimos processos de substituição (em particular no de 2018).

Para isso, mais do que se repetir argumentos, críticas ou perceções, penso que é essencial que o Governo e a oposição se foquem num processo limpo e de seleção, ponderação e avaliação de perfis para o exercício deste cargo. Apenas depois de cumprida esta etapa, devem escolher nomes em concreto, pois só assim se poderá almejar uma coerência entre o que se pretende e o que se escolhe.

Para além da coerência, é essencial que haja, também, transparência e escrutínio em todo processo. Vivemos numa sociedade de informação, com uma opinião pública exigente e opinativa e com uma apreciação pobre sobre a justiça e os seus protagonistas como recentemente se refletiu no estudo do ISCTE. Manter em segredo os candidatos ao cargo e os critérios de escolha será uma bala de canhão na credibilidade e independência do escolhido.

Apesar de não existir qualquer obrigação constitucional ou legal que o obrigue, nada obsta a que os responsáveis conduzam este processo de forma coerente e transparente e deem a conhecer os vários nomes que estão a ser avaliados para o cargo. Note-se que atualmente quando o nome do escolhido é anunciado já o é como PGR nomeado, ou seja, é sempre um facto consumado e nunca explicado.

Seria igualmente oportuno na próxima revisão constitucional os políticos ponderarem a mudança das regras formais deste processo de nomeação. Até pela comparação com a escolha de titulares para outras funções relevantes no aparelho de Estado, parece-me totalmente ultrapassada a ideia de o parlamento estar à margem do processo de nomeação do PGR.

Defendo por isso o aumento da predominância da Assembleia da República no processo de escolha do PGR, designadamente pela necessidade de aprovação do nome a propor pelo Governo ao Presidente da República por 2/3 dos deputados, que deve sempre ser ouvido previamente à audição na comissão própria. Seria igualmente interessante ponderar-se a possibilidade de se apresentar ao Parlamento mais do que um nome.

Enquanto não mudar a Constituição e a lei, que mude já a vontade dos protagonistas políticos e que acabem com este mi(ni)stério público que consiste o processo de nomeação do PGR no nosso país. Caso contrário, no atual ambiente político e social, corremos o risco de condenar – justa ou injustamente – o mandato do PGR a uma inaceitável marca de parcialidade. É importante perceber que o sentimento de parcialidade gera a perceção de incompetência, pois dá passo à ideia de que fulano só foi escolhido para o cargo para afastar beltrano ou para proteger sicrano.

Se a coerência do processo de escolha é essencial para a sua credibilidade, a transparência da nomeação e o seu escrutínio democrático serão a alma mater da sua legitimação e autoridade plenas. Evoluir para um processo de nomeação do PGR credível, transparente e mais democrático é, por isso mesmo, um primeiro passo imprescindível para que se inicie uma nova era no Ministério Público em Portugal.