Li por estes dias “Terra Americana” de Jeanine Cummins, que trata do lado trágico da migração.

Uma história que conta várias “estórias” de pessoas comuns que são colocadas em cruéis rotas migratórias e que ficam numa posição de fragilidade máxima, expropriadas dos seus direitos, liberdades e garantias. Conta, também, “estórias” de traficantes de pessoas que as exploram e dos “agentes de autoridade” que por aqueles são corrompidos e abrem a porta à barbárie social e humana.

Infelizmente, qualquer semelhança com esta narrativa e a realidade não é pura coincidência, conforme nos demonstram notícias constantes de vítimas de redes de tráfico humano e exploração de migrantes. Ainda no início deste ano foi notícia que uma “rede” em Portugal teria lucrado mais de três milhões de euros com exploração de imigrantes.

Um país que respeita a dignidade da pessoa humana valoriza e preocupa-se com aqueles que decidiu acolher.

Porém, as nossas cidades, vilas e aldeias veem hoje circular milhares de pessoas de quem verdadeiramente não queremos saber muito.

Apesar disso, esta vasta comunidade assegura tarefas muito importantes para a nossa vida coletiva e desenvolvimento. Veja-se, como exemplo, os setores da agroindústria e da construção civil ou o dos serviços de transporte de pessoas, bens e comida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Acresce que todos estes imigrantes dão um contributo muito importante para a nossa segurança social. Conforme números públicos recentes, só em 2022, o valor das contribuições por estes realizadas é sete vezes superior ao dos subsídios e apoios que receberam.

Um país que não anda distraído do essencial questiona-se: i) por que meios e “mãos” cá chegaram estes imigrantes? ii) com que grau de liberdade vivem?; iii) onde e em que condições habitam?; iv) em que termos têm acesso a cuidados de saúde e assistência social; v) em que realidades laborais exercem as suas atividades?

É hoje um grande mistério qual o grau de atenção e acompanhamento que as autoridades, os líderes políticos e da sociedade civil, dão a todas estas questões.

Contudo, pior que a aparente indiferença com que lidamos com estes temas, é ainda assim a visão polarizada de alguns partidos políticos sobre o mesmo, à boleia de estratégias eleitoralmente gulosas.

Vejamos, fará sentido não se exigir, sequer, um contrato de trabalho para se entrar em Portugal ou pelo menos uma garantia formal e certificada pelo Estado de que terá um à chegada? Ou, por outro lado, fará sentido propor-se um crime de “residência ilegal” contra pessoas que muitas vezes não vivem em liberdade plena e que nem têm capacidade de voltar aos países de origem?

Este tipo de radicalismos apenas ajuda a tornar Portugal numa porta aberta para a exploração de seres humanos e para uma cultura permissiva ao racismo e à xenofobia.

Considero ainda muito importante que se alinhe uma estratégia global de regulação das migrações, que envolva igualmente os países de origem. É essencial uma política internacional que vise combater em primeira linha as “redes” de tráfico e os exploradores; que organize e dê contexto adequado a cada migrante na sua jornada migratória; e que harmonize a legislação vigente em matéria de critérios de entrada e permanência nos diferentes estados.

Sem prejuízo do trabalho dos políticos e dos líderes da sociedade civil ser essencial, não descuremos, também, a relevância fundamental do envolvimento cívico de cada um de nós. Todos somos chamados a cumprir esta tarefa tão básica quanto tratarmos com dignidade e respeito o próximo independentemente da sua origem, raça, cor ou religião.

Como as “estórias” contadas em “Terra Americana” ilustram, a indiferença (ainda que suave ou até distraída) da maioria pelo respeito dos direitos fundamentais do próximo é o primeiro momento em que começamos a desrespeitar os nossos próprios direitos. E se a indiferença é triste e perigosa, a intencionalidade com que se usa os imigrantes para ter ganhos pessoais e políticos é abjeta e criminosa.