É um velho ritual, às vezes recreativo, outras vezes só maçador, ouvir em noite de eleições os protagonistas sobre os resultados. Quando digo protagonistas, digo os candidatos e os partidos que os apoiaram. Com mais ou menos voltas quase todos conseguem, mesmo contra toda a evidência, demonstrar que ganharam ou que não perderam assim tanto.

Na noite de 24 de Janeiro o ritual repetiu-se. Agora com a frequente colaboração activa de muitos comentadores, jornalistas e pivots. Os candidatos e os líderes dos partidos que os patrocinaram têm a desculpa de ser da vida deles que se trata e de saber que quem os ouve lhes dará já o devido desconto; mas da maioria dos jornalistas e analistas esperar-se-ia mais cuidado, mais pudor, mais reserva, mais independência, mais objectividade. Ou  talvez não seja já isso o que deles se espera. Até porque agora os tempos são de defender o “pluralismo democrático”  ou as “amplas liberdades democráticas”, a que todos assistimos em loop,  contra a “ameaça para a Democracia”. Enfim, há que barrar o Fascismo, que “não passará” –  ainda que a grande maioria não saiba o que foi o Fascismo, o que foi o Comunismo ou sequer o que é o Socialismo que nos governa. Não sabem, não tentam saber, não querem saber. Não vêem, não ouvem, não lêem e, por isso, ignoram. António Barreto fez recentemente um retrato cru e certeiro do estado geral do nosso jornalismo televisivo, com a sua ausência de critério e de edição, com a sua ignara, preguiçosa e acrítica colagem ao poder  e às “audiências”, com a sua indiferenciação e repetição até à náusea, com os seus rasteiros “directos” e entrevistas de rua e de estúdio.

O primeiro vencedor

Nas eleições de 24 de Janeiro houve claramente três vencedores: o primeiro, foi o Presidente. Marcelo Rebelo de Sousa ganhou com 60% dos votos, isto é, com maioria absoluta, o que significa que teve muito mais votos que todos os outros candidatos somados. Num tempo de Pandemia, que afectou talvez mais o seu eventual eleitorado que o de outros candidatos mais “ideológicos” e com eleitorados mais motivados, é um grande resultado.  Isto sem falar da Abstenção, que não terá sido só por doença ou confinamento mas também por insatisfação e desistência dos que não gostaram  da sua tolerante “co-habitação” com o governo.

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E a vitória é essencialmente do próprio candidato; embora os partidos da esquerda e da direita do arco constitucional tivessem vindo cobrar o seu papel decisivo na vitória, o candidato-presidente ganhou porque conta com um capital de confiança e de simpatia pessoal entre a grande maioria dos eleitores. É um caso de popularidade genuína e de habilidade e inteligência política que passa por cima das indigitações e apoios partidários e que, neste momento de crise e medo, foi reforçado pela vontade de estabilidade, desviando alguns votos políticos mais arriscados.

O primeiro dos segundos

António Costa é um dos outros três vencedores de 24 de Janeiro.

Com o convite informal a Marcelo Rebelo de Sousa para que se recandidatasse e a opção de não apresentar um candidato partidário, dando aos eleitores socialistas “liberdade de voto”, Costa saiu a ganhar. Sabia que, assim, ficaria no carro do vencedor, com os louros de ter contribuído com uma discrição calculada para a vitória do “candidato da moderação”,  ou seja, do candidato que lhe permite  ter um pé numa espécie de bloco central virtual e que lhe garante a estabilidade governativa, contendo ou diluindo alguma direita.  De passagem, varreu para as margens a esquerda do seu próprio partido, a que a candidatura de Ana Gomes deu voz, e relegou para mínimos históricos os parceiros da Geringonça (entre eles o BE, que manifestamente não era da sua estima), deixando-os reféns da estabilidade parlamentar até ao fim do mandato – logo, seus reféns e do PS.

Finalmente – e para um temperamento florentino como o de António Costa esta é talvez a maior vitória –, saiu beneficiado pelo crescimento exponencial de André Ventura, que vem criar um dilema agudo aos responsáveis do PSD e do que resta do CDS: ou fazem acordos com o Chega (como o Dr. Rui Rio fez ou deixou fazer nos Açores) e enfrentam os clamores de horror de toda classe política, pivots e opinionmakers, ou arriscam-se a ficar muito tempo fora do poder. A não ser que refaçam o “bloco central” para “salvar a democracia”, numa reedição formal do velho “Centrão” – o que é caminho de recurso sempre possível, mas que inevitavelmente fariam a partir de uma posição de inferioridade em relação aos socialistas, perpetuando-os no poder.

O sucesso do Chega, ao preencher um espaço político-social abandonado por uma direita sistémica incapaz de proclamar princípios e valores nacionais, identitários, conservadores, solidários – uma direita que foi deixando de defender causas e de falar em Política para só discutir “políticas” dentro dos valores políticos impostos pela Esquerda –  aproveitou e aproveita, colateralmente, ao PS e a António Costa. E quando o PSD se afirmou de “centro”, indiferenciou-se mais ainda do PS – António Costa não é propriamente um revolucionário, embora fosse pagando o apoio dos bloquistas com a colaboração e cedência em “desimportâncias folclóricas” –  como são a memória e a História, a livre expressão do pensamento, o nosso destino humano, comunitário e civilizacional, a vida  e a morte, e outras minudências.

Assim, no meio de uma Pandemia que nos colocou no topo da mortalidade mundial e da mais gritante falta de recursos e de gestão de recursos e meios humanos e materiais para salvar vidas, deparamo-nos com o oportuno e edificante espectáculo de estar o Parlamento a votar uma lei e a canalizar recursos para que o Estado, os médicos e os hospitais possam “ajudar a morrer” velhos, doentes e quem “já não está cá a fazer nada” (sim, num gesto de suprema humanidade, oportunidade e progresso, os parlamentares estão neste preciso momento a trabalhar para nos presentearem com um prático incentivo/direito à “morte assistida”).

O outro vencedor

O aparecimento do Chega não foi assim tão surpreendente. O que foi extraordinário foi o seu crescimento no tempo e nas circunstâncias adversas que enfrentou.

Não foi surpreendente porque o que aconteceu em Portugal já acontecera em toda a Europa. Com o fim da URSS e dos partidos comunistas, a extrema-esquerda passou para a primeira fila, entrou no delírio das causas disruptivas e dedicou-se ao “empoderamento” (ou à manipulação) de minorias de todas as espécies e sub-espécies, géneros e sub-géneros – esquecendo e abandonando a classe trabalhadora. Esta, também abandonada pelos partidos da direita e da esquerda liberais, sacrificada pela internacionalização desregulada e pela desindustrialização, ficou órfã de voz e de representação pública e política. O Front National, agora Rassemblement National, é hoje o partido com maior número de trabalhadores em França. Em Espanha, o sucesso do Vox e do nacionalismo popular ficou a dever-se à onda do separatismo catalão e ao assalto à cultura e à sociedade da frente de esquerda PSOE-PODEMOS, a par da pouco enérgica resposta do Partido Popular a esta vaga. Na Polónia e na Hungria – como no Leste em geral – foi a reacção às memórias ainda frescas da longa opressão comunista, canalizada por partidos nacional-conservadores. Em França, na Alemanha, em Itália foi a imigração culturalmente diferente, não integrada e renitente à integração.

A todos estes problemas, os partidos do sistema, também com medo de enfrentar a comunidade académico-mediática, responderam com evasivas, eufemismos, cândidas declarações correctas, políticas de protecção às “minorias”, interdições linguísticas ou insultos a quem ousava levantar objecções, provocando o aparecimento de novos movimentos ou partidos alternativos, geralmente radicais na contestação do sistema e da cultura dominante.

São movimentos socialmente transversais, com lideranças personalizadas e programas que variam de Estado para Estado, mas que têm denominadores comuns: defesa da identidade nacional, lei e ordem, proteccionismo dentro de uma economia de mercado, solidarismo social.

Os partidos portugueses viveram sempre com a preocupação do “antifascismo”. A esquerda passou a dominar neste regime. Não usou (tirando no PREC) os instrumentos repressivos institucionais do regime anterior – Censura Prévia, Segurança de Estado – mas criou um controlo de opinião, um maniqueísmo do admissível e do inadmissível, que dominou a cultura, a academia e o jornalismo. Houve alguns momentos em que o Estado ficou livre dessa tutela: na primeira AD, no primeiro Cavaquismo, no governo de Passos Coelho. Mas os chamados partidos de direita nunca se libertaram do guião que lhes foi imposto. Isso foi tentado no CDS de Monteiro e Portas e por algumas figuras do PSD – como Alberto João Jardim, na Madeira – mas depois tudo recolheu às “boxes” da respeitabilidade “democrática”.

Os oráculos explicativos têm sempre aqui uma dificuldade: a democracia é boa, o povo é bom, “os portugueses” são serenos… Então como é que um “populista” de Loures, vindo do PSD, um comentador desportivo, supostamente acolitado por uns sinistros gurus nazi-fascistas tem, em 15 meses, capacidade para passar de 68.000 votos para meio milhão?

Os diagnósticos dividem-se. A tese dos “deploráveis” à  portuguesa começa a ser abandonada, já que meio milhão de deploráveis espalhados por todo o país serão talvez  deploráveis a mais; e depois, o insulto parece não ter corrido bem nos Estados Unidos, como quando da ex-futura “Administração Hillary”. Fica por isso a perplexidade perante a falta de “soluções” para “esta gente”, que talvez não se componha só de deploráveis, que pode, inclusivamente, chegar a incluir gente relativamente “normal”, mas que está zangada e irritada e que se sente abandonada. Tão abandonada que até considera enveredar por um caminho “iliberal”, um caminho que pode levar ao “fascismo” (ao racismo, ao machismo, à homofobia, à transfobia, a todas as fobias); tão inexplicavelmente abandonada que exerce o seu direito cívico votando num candidato tão pouco cívico e tão carente de “soluções”.

Ora o que os partidos portugueses discutem há muito tempo são políticas e “soluções” – soluções sectoriais, partindo do princípio que a Política é sempre a mesma e a classe política também e que certas ideias e princípios não cabem nas baias da nossa impoluta democracia nem são sequer admissíveis a debate.

Do protesto ao projecto

A novidade do Chega foi trazer, ainda que pela negativa, a Política para o debate político. E a denúncia do alheamento e do afastamento da classe política e mediática dos valores e das preocupações de um “país real” que se sente atropelado e não representado.  E isso bastou para ter sucesso. Os excessos verbais do líder e dos que o combateram directa e persistentemente (todos os outros candidatos, todos os canais de televisão, toda a opinião escrita e falada) não o impediram de crescer. E cresceu, talvez não tanto quando poderia ter crescido (também com a remota possibilidade de uma segunda volta entre Marcelo e Ana Gomes a alarmar alguns eleitores conservadores), mas cresceu. E cresceu muito.

É claro que o voto em André Ventura – ou num partido que é, como todos os partidos portugueses, transversal socialmente e não ligado a uma classe ou grupo social específico –  é um voto reactivo. Só que, fazendo uma extrapolação de voto para as legislativas, extrapolação que nunca será líquida, mas que é, pelo menos, indicativa, o Chega teria um grupo parlamentar entre 15 e 20 deputados. E há uma série de círculos do país onde qualquer pretensão de eleger fora da esquerda terá de levar em conta os seus eleitores. Como bem observou Ricardo Costa, nas próximas eleições autárquicas os votantes do Chega serão incontornáveis para quem queira coligações vencedoras nos concelhos dos onze distritos onde André Ventura ficou em segundo lugar.

Mas depois do êxito da novidade e – em termos hegelianos – da antítese, o novo partido terá de avançar com um programa, remodelando a Agenda reactiva e punitiva e trazendo propostas e uma estratégia de resposta à tutela político-cultural das esquerdas. Esse programa também lhe poderá trazer a adesão de quadros médios capazes de fazer uma oposição nacional-conservadora e popular à hegemonia da Esquerda. Não só no campo da Economia, mas da Política, dos valores políticos, das causas, das ideias, dos princípios, que são o que guia e comanda o resto.